“Quando você acha que sabe todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas…”

sábado, julho 3


"NÓS, O TEMPO E O CONCEITO". 
UM ENSAIO SOBRE A FENOMENOLOGIA DO ESPIRITO DE HEGEL

José Maria Arruda*
Anunciada como introdução a seu sistema filosófico, a Fenomenologia foi a primeira grande obra de Hegel. Nela, o filósofo nos conduz por um longo e árduo caminho desde a forma mais simples de consciência, a consciência imediata, sensível, e mostra seu desenvolvimento necessário até atingir o âmbito da razão universal e do pensamento conceitual-especulativo, o único em que a verdade pode ser apreendida em sua totalidade, diferenciação e complexidade. O que torna este livro tão fascinante e sui generis?
Primeiro, a ambição hegeliana de recolher e reconstruir conceitualmente a odisséia humana no tempo, nossa experiência de mundo, tanto do ponto de vista do indivíduo, quanto do ponto de vista das coletividades ou do "Espírito", "o Eu que é um Nós e o Nós que é um Eu", como define Hegel. A Fenomenologia expõe as diversas faces do humano em sua busca de auto-realização e auto-conhecimento no mundo.
Segundo, a superação do solipsismo e do subjetivismo abstrato da filosofia transcendental de Kant. Assumindo a história como o lugar onde o Espírito realiza sua experiência de ser, Hegel efetua uma destranscendentalização da noção de sujeito, pensado não mais como uma entidade situada fora da história e independente das relações intersubjetivas, mas sim gerado precisamente em uma multiplicidade de relações e interações prático-vitais. As formas da consciência são figurações engendradas histórico-socialmente e, enquanto tais, são modos temporais - momentos - do desenvolvimento concreto do Espírito. Hegel dá uma nova interpretação ao princípio moderno de que "a verdade objetiva depende da certeza subjetiva". Para ele, somente através de sua construção histórica objetiva, isto é, através do processo efetivo de transformação da realidade natural em realidade cultural pode, de fato, o "espírito" certificar-se de que ele é, enquanto totalidade, a verdadeira realidade. Ao final do processo, o espírito adquire a certeza de que o mundo, realidade objetiva, não lhe é estranho, pois é resultado de sua própria produção e exteriorização.

Terceiro, a explicitação de que no cerne da experiência da consciência com o mundo se encontra uma estrutura racional cuja lógica tem seu núcleo na relação dialética sujeito/objeto. Cada etapa do desenvolvimento da consciência se articula em três momentos fundamentais: 1) a afirmação simples e imediata do objeto em detrimento da consciência; 2) o movimento contrário de afirmação do aspecto meramente subjetivo em detrimento do momento objetivo e, por fim, 3) a verdadeira indissociabilidade e mútua determinação de sujeito e objeto, consciência e mundo, espírito e realidade. A dialética é a tentativa de pensar a verdade como totalidade de momentos aparentemente contrapostos e excludentes, mas que se revelam, no fundo, como indissociavelmente imbricados e inclusivos.

Quarto, a passagem do plano meramente cognitivo para o plano pragmático, que se dá com a descoberta hegeliana de que nossa relação com o mundo é mediada por nossas interações práticas com outras consciências. Na segunda parte da Fenomenologia percebemos que nossa experiência com o mundo é acima de tudo volitiva, isto é, estruturada pelo desejo. No desejo, o mundo desaparece em sua independência e as coisas se convertem em objeto para nós. A dialética do desejo vai trazer à tona o maior de todos os desejos: o desejo por outra consciência, o desejo de dominação e de reconhecimento social. Desejar que o outro negue a si mesmo como sujeito, é subordinar completamente seu desejo ao nosso, é destituí-lo de qualquer autonomia. Logo, da relação com as coisas somos levados a pensar as relações conflitivas entre os sujeitos, marcadas pelo combate de vida e morte, pelo reconhecimento, pela auto-afirmação do senhor como sujeito e a transformação do escravo em objeto. As relações sociais são atravessadas de poder, servidão, conflito, luta, mas o "espírito" pode também superar esse momento de sua história e engendrar formas não-opressivas de interação, através do trabalho e da educação para a sociabilidade. O que Hegel faz aqui é incorporar Hobbes e Rousseau em uma ampla reflexão sobre "quem somos nós", mostrando a estrutura essencial da constituição da subjetividade enquanto ser social. O capítulo sobre a dialética do Senhor e Escravo na Fenomenologia pertence, sem dúvida, às mais belas páginas da história da filosofia, não só por sua plasticidade, por seu tom dramático, mas também pelo que se coloca em jogo aí: a liberdade dos indivíduos, o embate de vida e morte pelo reconhecimento social, pedra de toque de toda a política e do direito.
Quinto, a dura crítica que a Fenomenologia efetua às formas cindidas e alienadas da consciência, incapazes de compreender o curso do mundo e de agir efetivamente para alterar seu rumo. Dessa cisão e alienação resulta a consciência infeliz, aquela típica consciência com baixa auto-estima, que se nega constantemente por se sentir impotente, inútil, inessencial diante do mundo; ou resulta, no outro pólo, modos da consciência ascética cuja única atitude consiste em subtrair qualquer valor ao mundo e à existência. Através de diversos tipos - o dilema de Antígona, o isolacionismo do estóico, a indiferença do cético, o pietista que anseia pelo além-vida, o moralista kantiano para quem a moralidade está acima de tudo, a bela alma que se preocupa mais com a própria virtude do que em melhorar o mundo, o jacobino cuja defesa da virtude termina em terror absoluto - Hegel exemplifica aquela estrutura cindida entre consciência e mundo, sujeito e objeto, característica da visão moral, religioso-pietista, e romântica-infeliz do mundo, incapaz de pensar a subjetividade como momento de uma totalidade histórica efetiva e seu agir no mundo como forma necessária de exteriorização e de conquista de si. Assim como a metafísica duplica o mundo em um mundo perfeito do além e um mundo imperfeito do aquém, essas formas da consciência não conseguem compatibilizar a certeza de si mesmo com o mundo em que estão realmente situadas.

Por fim, uma última tensão é apontada por Hegel: à medida que o indivíduo trabalha para a cultura e fortalece as estruturas sociais, a inserção no mundo social significa o fim do eu individual, sacrificado em nome do coletivo. Diferentemente de Nietzsche, para quem o fortalecimento do gregário significa um rebaixamento do humano e sua completa uniformização e padronização, impedindo o "tornar-se o que se é" de cada um, Hegel acredita que o eu individual vai ser superado, conservado e fortalecido em seu ser-outro: o universal, o espírito. Para ele, somente aí o humano pode alcançar sua verdadeira realização e liberdade.


Em nenhum outro livro, Hegel concretizou de forma tão imponente a tarefa da filosofia de compreender o tempo no conceito.
[JOSÉ MARIA ARRUDA é doutor em Filosofia pela Universidade de Essen/Alemanha; Pós-Doutor pela Universidade de Aachen; Professor Adjunto IV do Departamento de Filosofia e do Mestrado em Filosofia da Universidade Federal do Ceará.]
Nota do Autor:CONHEÇA O FILÓSOFO
Georg Wilhelm Freidrich Hegel (1770-1831) nasceu em Stuttgart, estudou inicialmente Teologia no Seminário de Tübingen. Após o seminário, dedicou-se à Filosofia, tornando-se o principal nome do movimento filosófico do Idealismo Alemão. Entre suas obras principais estão: A Fenomenologia do Espírito (1806); A Ciência da Lógica (1812/1816); A Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1818) e os Princípios da Filosofia do Direito (1821). A influênciacia de sua obra se estende de Marx, a Adorno, Merleau-Ponty, Habermas, Lacan e outros.

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