“Quando você acha que sabe todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas…”

quinta-feira, maio 5

Copérnico e a Tradição Aristotélica



Marco Antonio Franciotti*
A concepção de universo do astrônomo polonês Nicolau Copérnico é considerada um divisor de águas na história da ciência. Sua postulação do heliocentrismo, em contraposição à concepção geocêntrica da tradição aristotélica, engendrou os germes da revolução científica moderna. Há, contudo, vários estudiosos que têm procurado sustentar a idéia de que, embora Copérnico tenha rompido com a visão de mundo dominante da época, muitas de suas argumentações em defesa de suas teses acabam via de regra retomando princípios marcadamente aristotélicos. O filósofo da ciência Thomas Kuhn, por exemplo, assinala que é exatamente na ruptura que Copérnico mostra mais claramente sua dependência com relação à tradição. E o historiador da ciência Arthur Koestler, em sua magnífica obra "Os Sonâmbulos", afirma que Copérnico esforçou-se ao máximo para encaixar o movimento da Terra dentro de uma estrutura baseada na física aristotélica. Mas era como encaixar um dispositivo turbo-propulsor em uma velha diligência em ruínas. Copérnico teria sido, na verdade, o último dos aristotélicos entre os grandes homens da ciência.
Em vista disso, é importante retomar as concepções tanto de Copérnico quanto de Aristóteles, detectando os pontos de convergência e de divergência entre ambos a fim de avaliar até que ponto ocorre cm Copérnico uma ruptura com a ciência de seu tempo. Segundo o modelo aristotélico, o universo é composto de inúmeras esferas concêntricas, a menor delas sendo a Terra e a maior, a das estrelas fixas. Cada um dos planetas, o sol e a lua estão contidos numa esfera. A esfera da lua divide o universo em duas regiões completamente diferentes, povoadas de diferentes tipos de matéria e sujeitas a leis diferentes. A região terrestre ou mundo sublunar na qual vive o homem é imperfeita, sujeita a mudanças e variações. A região celeste ou mundo supralunar é eterna, imutável e perfeita. As esferas celestes movem-se natural e eternamente em círculos, ocupando sempre a mesma região do espaço.
Para entender melhor essa distinção, é preciso considerar a teoria aristotélica do movimento. Todo movimento simples é ou retilíneo (para longe do e em direção ao centro) ou circular (em torno do centro). No que diz respeito ao mundo sublunar, o conceito básico para se entender o movimento é o de lugar natural, que é aquele no qual naturalmente um .corpo está ou ao qual volta quando dele é afastado. O movimento que coloca esse corpo numa trajetória em direção ao seu lugar natural é chamado de movimento natural. O movimento produzido por um agente que retira um corpo de seu lugar natural é chamado de movimento violento. Assim, os quatro elementos que compõem o mundo sublunar movem-se de acordo com seu peso ou leveza sempre em linha reta, a água e a terra cm direção ao seu lugar natural que é o centro da Terra, c o fogo e o ar, em linha reta para longe do centro da Terra.
Aqui é preciso observar que a noção de lugar natural traduz uma concepção puramente estática de ordem cósmica. Se todas as coisas estivessem em ordem, elas restariam imóveis em seus respectivos lugares naturais. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que todo movimento no mundo sublunar implica uma desordem cósmica, uma ruptura de equilíbrio, seja devido a uma causa externa que pôs em movimento um corpo qualquer (movimento violento), seja devido à necessidade desse corpo de retornar à ordem natural (movimento natural).
Assim, pode-se compreender também que os movimentos no mundo sublunar devem ser necessariamente passageiros. O movimento natural cessa naturalmente quando seu objetivo é alcançado, i.e., quando o corpo retorna ao seu lugar natural. Quanto ao movimento violento, admitir que ele possa se prolongar indefinidamente seria conceber um mundo completamente desorganizado, o que resultaria, como diz o historiador da ciência Alexandre Koyré, no abandono da própria idéia de Cosmos ou totalidade ordenada.
Por todas essas razões, Aristóteles advogara que a Terra jaz no centro do universo. Sem a admissão do geocentrismo, não se poderia explicar o movimento retilíneo dos quatro elementos para longe em direção ao lugar natural, que é o centro da Terra. Não se poderia sequer explicar o mero fenômeno da queda livre. Do mesmo modo, sem a Terra para agir como centro de rotação das esferas celestes, não seria possível conceber o movimento circular perfeito dos corpos do mundo supralunar.
Tais considerações permitem entender mais claramente a resistência de Aristóteles e de seus seguidores com relação ao movimento da Terra. Para um deles, o astrônomo Alexandrino Ptolomeu, a própria suposição do movimento diário da Terra romperia com a idéia de ordem cósmica. Esse movimento que percorreria o circuito total da Terra em 24 horas seria necessariamente muito impetuoso e de uma velocidade incomparável. Por exemplo, se a Terra se movesse, os corpos arremessados para o alto em linha reta não cairiam no mesmo lugar de onde iniciaram seu movimento.
Copérnico procurou combater essa argumentação aristotélica com todas as armas de que dispunha na época. O problema, porém, é exatamente esse: suas armas eram tão somente as noções aristotélicas: suas argumentações limitaram-se a suavizar a incompatibilidade da hipótese do heliocentrismo com a astronomia prevalecente na época, ou ainda, a preservar surpreendentemente vários princípios da tradição. Como diz Kuhn, o movimento do sol foi simplesmente transferido para a Terra. O sol não é ainda uma estrela mas o único corpo central em torno do qual o universo é construído: ele herda as antigas funções da Terra e mais algumas novas funções.
Tal qual o universo aristotélico, o universo de Copérnico é composto de esferas e, o que é igualmente significativo, finito. Para além da esfera das estrelas fixas nada existe. O universo está restrito ao interior dela. Copérnico, porém, deu um passo fundamental ao deter o movimento da esfera das estrelas fixas e ao ampliar consideravelmente o raio da esfera do universo em comparação com a concepção medieval. Mas restava dar um passo maior, indo de um universo muito grande para o universo infinito. Tal passo ele jamais ousou dar. Como diz Koyré, Copérnico parecia entender que a bolha do universo tinha de inchar antes de estourar. Esse passo em direção à infinitude do universo só seria dado mais tarde, em grande parte devido ao heliocentrismo, pelo astrônomo e matemático Giordano Bruno (1548-1600).
Copérnico conserva a distinção entre movimento natural e violento e admite que o movimento circular é natural. Do mesmo modo, ele recorre à idéia aristotélica de que a natureza é organizada e que tal ordem é interrompida temporariamente apenas quando ocorre um movimento violento. Em outras palavras, Copérnico se esforça em ajustar a hipótese da mobilidade da Terra, com algumas teses centrais da física de Aristóteles. Mas ele não chega a mostrar que o seu heliocentrismo é superior ao geocentrismo de Ptolomeu e seus seguidores; ele mostra apenas que o heliocentrismo não é tão incongruente com a tradição como afirmavam os defensores do geocentrismo.
A Terra (imperfeita) deve possuir movimento, na medida em que a mobilidade é sinal de imperfeição, cabendo aos corpos celestes (perfeitos) a imobilidade. Além disso, é o sol, em virtude de sua suprema perfeição e importância como fonte de luz e da vida, que tem de desempenhar no universo o papel antes atribuído à Terra. "Quem", afirma Copérnico, "nesse esplêndido templo colocaria a luz em lugar diferente ou melhor do que aquele de onde ele pudesse iluminar ao mesmo tempo todo e templo'' Portanto, não é impropriamente que certas pessoas chamam-no de lâmpada do universo, outros de sua mente, outros de seu governante".
É interessante como Copérnico tenta atacar Aristóteles adotando premissas aristotélicas. Melhor dizendo, ele concorda com a tradição ao assumir a imperfeição da terra e a perfeição do mundo supralunar mas o faz com o objetivo de combater as conclusões astronômicas tradicionalmente aceitas. Essa visão aristotélica da perfeição da esfera celeste também está por trás de sua argumentação sobre a esfericidade do universo, acompanhada da antiga idéia grega de que a esfera é a figura geométrica mais perfeita, pois é a mais adequada àquilo que contém e preserva todas as coisas.
Não apenas o universo é esférico, mas também a Terra – e todos os outros planetas – exibe o formato de uma esfera. "A Terra tem o formato de um globo, uma vez que todos os seus lados repousam sobre o seu centro. Pois quando as pessoas viajam para o norte, o vértice norte do eixo da revolução diária se move gradualmente para cima e muitas estrelas situadas ao norte cessam de se pôr, enquanto certas estrelas no sul não nascem. Assim, a Itália não vê Canopus (uma das estrelas da constelação Carina, a cem anos-luz da Terra), que é visível no Egito. Além disso, (...) os habitantes do leste não percebem os eclipses noturnos do sol e da lua. E quando a Terra não é visível do convés de um navio, ela pode ser vista do topo do mastro".
Não há praticamente nenhuma modificação substancial das razões apontadas por Aristóteles; há somente uma complementação dos argumentos observacionais. Copérnico mantém a tese aristotélica sobre a eqüidistância do centro da Terra de todos os corpos em sua superfície, formando uma esfera, e alguns dados observacionais são simplesmente recolocados com outros exemplos.
Um pequeno distanciamento e um subseqüente regresso aos pontos centrais do sistema aristotélico: tal é o movimento pendular da argumentação de Copérnico, pelo menos no livro I das "Revoluções", onde ele apresenta suas concepções físicas e astronômicas. Tais similitudes com o pensamento aristotélico, entretanto, não tornam Copérnico um pensador de duvidosa importância para a ciência. Há que se entender que Copérnico foi o primeiro grande astrônomo da Renascença a se pronunciar contra o geocentrismo e que se dedicou com empenho à construção de uma astronomia heliocêntrica. Como salienta Kuhn, Copérnico não era nem um antigo nem um moderno, mas um astrônomo da Renascença em cujo trabalho emaranharam-se as duas tradições. Sua obra configurou-se como um ponto de partida para os cientistas posteriores, que já não tinham mais nas mãos os problemas que o ocuparam, mas sim os problemas da nova astronomia heliocêntrica.



*Marco Antonio Franciotti,possui graduação em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1981) , mestrado em Mestrado Em Lógica e Filosofia da Ciência pela Universidade Estadual de Campinas (1989) e doutorado em Doutorado Em Filosofia pela University of London (1995) .

quinta-feira, março 10

Auto-referência do conceito e solilóquio da filosofia

 

Alexandre Fernandes B. Costa Leite 1
1. Introdução
        O atual artigo carrega em si o ímpeto de delinear as linhas que efetuam o labor realizado por dois pensadores franceses contemporâneos, Gilles Deleuze e Félix Guattari, e mostrar em sentido geral a concepção que têm da filosofia. A primeira parte centra-se na maneira que a  filosofia é focalizada, a atitude filosófica a realizar-se na ação  criadora de conceitos, na auto-referencialidade dos mesmos; a segunda parte visa mostrar que tal postura sobre o que é a filosofia produz, inevitavelmente, o solilóquio, o que considero nada mais ser que a “morte da filosofia” .
 
2. Desenvolvimento
2.1. A Filosofia e os Conceitos
A pretensão aqui é a de apontar que o caráter que a  filosofia recebe na obra de Deleuze e Guattari angaria um itinerário inventor, uma propriedade criadora, não contemplativa, nem reflexiva, muito menos comunicativa, pois o pensar filosófico é compelido para o ato de intensa produção conceitual, a filosofia se passa na criação de conceitos, na arquitetura conceitual e na formulação de sentido.  Conseqüentemente,  o filósofo é o ser  humano capaz de elaborar conceitos. Nessa perspectiva devem-se fazer as seguintes perguntas: O que se passa com um conceito? Como ele funciona? Sem dúvida, formular conceitos sem problemas a serem resolvidos é uma tarefa inútil, desagradável, visto que se ganha em trivialidade ao criar pelo simples fato de criar sem nada a resolver. Os conceitos devem ser colocados de modo coerente, ou seja, remetendo-se a problemas, pois estes são o sentido da invenção conceitual ; assim, deve-se criar conceitos  para solucionar problemas que se considera mal vistos ou mal colocados pela história da filosofia.
Observar os escritos deleuzo-guattarianos sobre a filosofia significa chegar a conclusão  de que os conceitos possuem caracteres úteis para a compreensão do método utilizado e proposto para “fazer filosofia”:
1) Os conceitos têm uma história, isto é, carregam em si partes de conceitos que resolviam outros problemas          e  habitavam outros planos, mas também têm um devir responsável pelas conjunções entre partes conceituais em um mesmo plano;  2) São formados por partes conceituais que podem ser tomadas como conceitos . Assim,  uma extensão ao infinito é provocada; por exemplo, como mostra Deleuze, o conceito de EU em Descartes é formado por três componentes: duvidar, pensar e existir. Cada um desses, por sua vez, já é um conceitos que tem seus componentes conceituais. 
3) Possuem uma endo e uma exo-consistência; aquela é definida pela inseparabilidade interna das zonas de comunicação (a possibilidade de contato  entre os conceitos em um mesmo plano de imanência não permite a separação dos componentes que criam um conceito, pois se assim ocorresse o conceito “a” se metamorfosearia em “b”), esta (exo) é determinada pela construção de pontes entre planos distintos. Os conceitos são corolário da condensação,  acumulação e conexão dos  seus elementos. Ou seja, o que interessa na formulação dos conceitos é a produção de sentido, a consistência entre os conceitos.
4)  Define-se o conceito, principalmente, por sua auto-referência, ou seja, ele não é uma função por não referir-se a nada exterior a ele próprio; o conceito não busca a referência em um estado de coisas (fatos), mas sim nos acontecimentos (consistência). O conceito é sua própria referência “põe-se a si mesmo e põe seu objeto”. Com essa postura percebe-se que Deleuze e Guattari direcionam o pensamento conceitual a uma produção de diferença e de sentido, ou seja, acreditam que o importante é produzir sentido, não se interessando mais com uma correspondência representativa, mas só com própria coerência interna dos pensamentos e da produção de sentido. A auto-referencialidade provoca o monólogo do conceito, visto não referir-se a nada exterior a ele próprio e assim, por conseguinte, se fechar nas ligações dos conceitos com seus componentes. Fazer filosofia, no modo deleuzo-guattariano, acaba se transformando em uma elaboração das normas de sua própria criação lingüística. O monólogo significa que o conceito é conhecimento de si.
           A construção conceitual é o ato da filosofia, segundo Deleuze e Guattari. Sempre que conceitos são criados faz-se necessária  a instauração de um plano de imanência ou planômeno. A criação de conceitos e a instauração do plano de imanência caracterizam a filosofia como um construtivismo. A compreensão do que se passa com um conceito é, simultaneamente, o entendimento do plano de imanência, pois eles ressoam, estão em correlação, mas não se confundem. O que está em jogo é uma imagem do pensamento, uma luta contra o caos responsável pela dissolução do consistente, o plano retira desse caos  a consistência que é doada aos conceitos . A originalidade de Deleuze e Guattari está justamente nesses pontos: o da criação conceitual e o implante do planômeno. O plano de imanência- imagem do pensamento- é, no dito de Pelbart,  o “pensamento sem imagem”, “sem modelo” e “sem forma”; ou seja, para usar o estranho conceito de Deleuze e Guattari, o “espaço liso- vetorial”, cortado por intensidades, por forças criativas de atualização da diferença múltipla que passam pelo  virtual com um corte que retira dele consistência. O plano é a possibilidade de orientação do pensamento, o terreno pré-filosófico que vai traçar coordenadas para a construção conceitual. O plano é a casa do conceito, seu território.
        O construtivismo filosófico se baseia na criação de conceitos e na instauração do plano de imanência.
        O que significa criar conceitos? Para Deleuze e Guattari, o conceito não deve se preocupar em dizer a coisa em-si ou sua essência, mas sim o acontecimento que se efetua em um estado de coisas. A proposta deleuzo-guattariana é um evenemencialismo, o “tratamento dos conceitos como acontecimentos e não como noções gerais, como singularidades e não como universais” 2 . Criar conceitos é, no intento deleuzo-guattariano, criar sentido no plano de imanência, e não sair dele e não buscar uma referência ulterior ao seu território (  se a verdade existe, então ela está no sentido das conjunções dos conceitos no plano; logo, é construção da linguagem); Deleuze e Guattari não têm, pelo que parece, o desejo de buscar uma referência fora do plano. O movimento do pensamento a partir dos conceitos permite estabelecer a conclusão de que os conceitos são objetos imanentes a um horizonte, rizomas (sistemas a-centrados e não hierárquicos)  que realizam conexões, ligamentos e junções sempre horizontalmente num mesmo plano ou não (perpetrar a construção de sentido), sem ultrapassar o plano verticalmente, ou seja, evitar a realização de uma experiência que centre o pensamento em uma realidade ulterior, sobrenatural, mística e que se preocupe com uma adequação do conceito com a coisa ou com estados de coisas;  “desterritorializar” o pensar por figuras de cunho transcendental (no sentido escolástico) é uma das propostas de Deleuze e Guattari. A imanência do conceito impede o figurar, o pensar por imagens, a busca de verdades fora do plano.  Criar conceitos e produzir sentido têm uma ligação essencial com a linguagem, o pensamento como corolário da ordenação da linguagem; os conceitos são  manifestações da linguagem, e a filosofia- do modo que Deleuze e Guattari a encaram-  me parece se reduzir a um jogo de  coerência da linguagem, ou melhor, um jogo de conceitos com consistência em seus devires. Essa hipótese é verificada no livro Mil Platôs que traz em seus movimentos e ritmos uma infinidade de conceitos e uma extensa produção de conexões entre os vários platôs ( os platôs são, de acordo com Deleuze e Guattari, estruturas diferente dos capítulos; com essa idéia queriam construir um novo tipo de livro que permitisse ao leitor criar sua própria estratégia de leitura e criação- o livro máquina de guerra ao invés do livro aparelho de Estado.)
            Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari trabalham dois tipos de imagem do pensamento, de um lado o modelo raiz, do outro o rizoma: há um modelo do pensamento que impera e condiciona sua imagem transformando-o em pensamento forma-Estado; o que é isso? Delírio? Não, apenas uma maneira de denunciar o pensar submetido as exigências de um “espaço estriado-métrico”, hierarquizado, ilusionado pela transcendência (vida eterna, deus e alma) , submetido aos dogmas e com pretensões de ser fechado, o pensar revestido de necessidades escatológicas, o pensar que deseja a verdade e a fundamentação última. Esta é a raiz introjetada no pensamento.
            De outra forma, o rizoma floresce como a imagem do pensamento diferente da raiz; o pensamento rizomático, a-centrado e não hierárquico, criador de diferenças, consistência e sentido ( sistema aberto apto a montar cadeias, ou seja, o pensamento não acabado que busca realizar ressonâncias entre planos distintos). A multiplicidade heterogênea que valoriza a construção conceitual, a imanência do conceito ( suas ligações, conexões ) e a invenção do sentido. É claro que Deleuze e Guattari estavam dispostos a criar conceitos partindo  dessa última espécie de imagem do pensamento.
Deleuze não se preocupa com o verbo ser (não quer criar uma imagem dogmática do pensamento- o pensamento arborificado), e sim com a conjunção “e” ( quer perpetrar um campo de multiplicidades, usar o pensamento como experimentação- o pensamento rizomático aberto e disposto a realizar intercâmbios), não tem interesse em dizer o que uma coisa é e nem está ligado à vontade de verdade , o que interessa para Deleuze e Guattari são os acontecimentos, a experiência paradoxal, a intensidade limite que leva à   criação e à formação de sentido. Talvez seja por isso que os livros de construção teórico-conceitual de Deleuze e Guattari  sejam demasiadamente obscuros, pois criam tantos conceitos que o leitor acaba por se perder em um mar de “rizomas”, “desterritorializações”, “corpos sem órgãos”, “nomadismo” e por aí vai.
 
  
Resumamos, pois, nossas questões: 
1) A filosofia, em Deleuze e Guattari, é a criação de conceitos; 
2) Os conceitos, que se encontram numa imagem do pensamento (plano de imanência) devem se referir aos acontecimentos ( consistência entre conceitos e formação de sentido) que se efetuam nos estados de coisas, e não com o que a coisa é (rizoma contra raiz); 
3) O conceito é auto-referencial; 3  é um “pássaro solíloquo”, pois é conhecimento de si e não do mundo. 
            A filosofia movida por intensidade, proposta por Deleuze e Guattari, significa que o impensável toca o pensamento e faz com que ele fique ativo, pois o impensável, o que não possibilita imagens, produz uma violência contra si, uma violação dos princípios do pensamento; a força que vem de fora.  E, também, pensar por conceitos que se ocupam de acontecimentos (são singularidades, não universais), como quer Deleuze, é ter uma relação intrínseca com a criação, com o pensamento “nômade” que busca equilibrar sua consistência e realizar seu sentido em múltiplas situações que se apresentam ao pensamento. A filosofia busca dar consistência ao virtual que se considera desordenado. Em suma, o primeiro movimento da filosofia nômade-rizomática formulada por Deleuze e Guattari consiste na criação de conceitos em um plano de imanência com o objetivo de fugir da busca da verdade, da fundamentação última; a filosofia como experimentação se preocupa com sua consistência, coerência , auto-referência e produção de sentido no plano do imanência.
              Todos os movimentos de conceitos são percebidos no conjunto de livros em parceria com o psicanalista Félix Guattari. Mil platôs, tomo que dá continuação a O Anti-Édipo, é o livro dos conceitos. Deleuze chegou a considerar os seus platôs como o melhor de tudo que já tinha escrito. Em Mil Platôs,  Deleuze e Guattari trabalham a filosofia de modo criativo, o pensamento conceitual atinge toda sua imanência, palavras de ordem não-filosófica adquirem estatuto filosófico, por exemplo: “rizoma”, “corpo sem órgãos”, “agenciamentos”, “desterritorialização”; tais conceitos (e não metáforas) são utilizados para explicar ontologia, filosofia política, música, arte, ciência  e uma multiplicidade heterogênea que pode ser atualizada como pensamento nômade, ou seja, que se preocupa com a criação conceitual e com o sentido.
O que está em jogo na questão do pensamento é a criação; tanto a filosofia como a ciência e a arte a fazem, nenhuma ocupa hierarquia em relação a outra, visto que essas três manifestações do conhecimento se ocupam da criação. Vejamos, assim, brevemente, como a ciência e a arte são concebidas por Deleuze e Guattari.
        A ciência não se ocupa de conceitos, e sim de funções que se apresentam em forma de proposições. O caos ( que é o virtual) traz na sua singularidade o possível, mas com consistência e referência entrópicas. A ciência busca um modo de atualizar o virtual através das funções, ou seja, retirar dele referência. A ciência instaura um plano de referência. A exigência de paradigmas de verdade inibe o poder imanente do conceito (consistência e sentido no jogo dos planos) em detrimento de verdades capazes de fazer uma correspondência entre o objeto ( estado de coisas- fatos) e a idéia (modelo hipotético). A ciência é paradigmática, luta para dominar o caos e transformá-lo em função, em verificação. A ciência é testável e refutável.
A arte forma sensações, tenta deixar o caos sensível, traça um plano de composição lotado de blocos de sensação. A arte realiza composições de sensações. A arte é realidade subjetiva.
Deleuze e Guattari não aceitam a atribuição axiológica que valoriza uma das três espécies do conhecimento mais que outra. Para eles existe até uma possível ressonância entre os tipos de planos; projeto audacioso que tentam criar.
3. Conclusão
            Tentei sugestionar o leitor a acreditar que a filosofia concebida como criação de conceitos, e estes como elementos auto-referentes, produz uma subversão da imagem clássica da filosofia, pois não se preocupa com a aquisição de um conhecimento capaz de realizar uma correspondência entre o conceito e um estados de coisas , mas sim com a própria coerência dos conceitos, com a produção de sentido que não busca ascender ao plano de imanência para atingir uma verdade ulterior. A auto-referencialidade do conceito produz uma atitude anti-comunicativa, anti-discursiva em favor de um monólogo do conceito; e, também, fortifica o discurso filosófico deleuziano contra os juízos, pois o que podemos falar daqueles que não se preocupam com a busca e construção de verdades?
            O pensamento deleuzo-guattariano não pode ser caracterizado como uma fraude, visto que ele é totalmente coerente com o seu projeto: tratar o pensamento como experimentação, criação e viagem. Filosofar é criar e não participar de um encontro de “convivas bêbados”, de uma ” grande conversação”. Para realizar essa experimentação, Deleuze e Guattari se alimentaram da “potência do falso”.
            Tratar o pensamento como criação é uma forma de conceber a vida como processo de criação, uma “obra de arte” constantemente vinculada a produção de singularidades e diferenças.  Explodir a estratificação do conhecimento, bem como liberar intensidades ( acontecimentos) criativas é uma maneira de dissolver o pensamento reduzido às convenções autoritárias para a busca do conhecimento. O projeto filosófico de Deleuze e Guattari é o de uma filosofia da diferença, do nomadismo, das multiplicidades. A filosofia como criação de conceitos auto-referentes.
            A importância que noto no trabalho de Deleuze e Guattari é a proposta criadora que invade toda sua obra, a composição do pensamento como força responsável por extrair sentido do não-senso que nos cerca através da criação dos conceitos. Deleuze, como qualquer outro filósofo, não deve ser lido como um mensageiro de uma verdade absoluta, de uma fundamentação do conhecimento, mas sim como um filósofo que tem o seu valor por alterar uma imagem do pensamento, por subverter de modo cômico a tradição e de dar um caráter, como diz Sousa Dias, de “ficção científica” à filosofia.
            Em suma, o propósito do ensaio foi inspirar que a filosofia deleuzo-guattariana é uma experimentação na ordem dos conceitos, o que caracteriza o chamado construtivismo filosófico baseado na criação de conceitos e no implante do plano de imanência. Para Deleuze e Guattari, a filosofia é a invenção de conceitos, estes possuem um rol de dados que permitem o conhecimento do modo de construção filosófica optado por Deleuze e Guattari. A tese fundamental é a seguinte: a filosofia é criação de conceitos; ora, se os conceitos auto-referentes e se a filosofia é feita de conceitos, então pode-se dizer que tal método de fazer filosofia se transforma em um discurso auto-referente, ou seja, conhecimento de si própria e não do mundo. 4
            Se os conceitos são singularidades, e não idéias gerais, então fica fácil de perceber que o ímpeto dos pensadores era estimular a criação conceitual do indivíduo. Ler Mil Platôs com a tentativa de encontrar uma verdade é uma tarefa grotesca, pois esse não é o objetivo do livro, mas sim o estímulo do uso dos conceitos nos acontecimentos da forma que for mais interessante ao sujeito que entra em contato com o livro. Assim, é inútil perguntar pelo significado dos conceitos, visto que são singularidades e podem ser utilizados em múltiplas produções de sentido. Uma filosofia auto-referente nada mais é que um monólogo, um solilóquio, visto não ser parte de um sistema comunicativo e não se interessar em conhecer o mundo, mas somente si própria.
            A postura deleuzo-guattariana sobre o que é a filosofia implica uma construção conceitual, mas se estes são auto-referentes, então a filosofia que é composta de conceitos também acaba por se transformar em auto-referência. O uso dos conceitos como singularidades produz o relativismo construtivista, que é caracterizado pela construção individual de conceitos, ou de modo sincero, cada um constrói seus conceitos e tudo fica por isso mesmo. Esse relativismo é, ao meu ver, a morte da filosofia, pois destrói um pressuposto básico filosófico: a comunicação.
            Dessa forma, por mais que tenham incentivado a construção conceitual como método da filosofia, não escaparam de aniquilá-la.
 
Notas
1.   Acadêmico do 3º ano do curso de graduação em filosofia na UFG.
2.  Sousa Dias, Lógica do Acontecimento,  p.17 
3.   Sousa Dias, em seu livro “Lógica do Acontecimento”, tem uma excelente análise da auto-referencialidade ” Todo esforço de Deleuze se concentra então em evidenciar a principal implicação desta tese: o conceito não é uma proposição, não é proposicional, a filosofia não é discursiva. Na lógica e na ciência, uma proposição define-se pela sua referência a coisas ou estados de coisas, mas o conceito é auto-referente. Nem a ciência e a lógica operam por conceito, nem os conceitos filosóficos são assimiláveis a proposições ou funções proposicionais. As funções científicas supõem uma referência em ato, são coordenações necessárias de estados de coisas ou “objetividades” como termos variáveis independentes, ao passo que as funções propriamente lógicas recaem sobre a referência em si mesma, vazia, ou como possibilidade proposicional, determinam as condições de referência das proposições em geral. Opostamente os conceitos remetem apenas para puro eventos incorporais distintos das suas atualizações em corpos e estados corpóreos e que formam, não a referência, mas a consistência dos conceitos. Por outras palavras, os conceitos remetem unicamente para si (para suas separações internas como variações inseparáveis, interdependentes) e para outros conceitos-acontecimentos no plano de imanência: endoconsistência e exoconsistência dos conceitos. Em suma, o conceito não é nem uma função científica nem uma proposição lógica, não tem referência, e como tal é inintegrável de sistemas discursivos”, Lógica do Acontecimento, p.69-70
4.  o ápice da construção conceitual é verificado no livro Mil Platôs 
Bibliografia
01- Deleuze, Gilles. O que é a Filosofia?/ Gilles Deleuze e Félix Guattari; tradução de Alberto Alonso Munõz. Rio de Janeiro: Ed.34, 1992.
02- Deleuze, Gilles. Lógica do Sentido; tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo, Perspectiva. 1994.
03- Dias, Sousa. Lógica do Acontecimento: Deleuze e a Filosofia. Edições Afrontamento: 1995
04- Pelbart, Peter Pál. O tempo não-reconciliado. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 1998. (Coleção Estudos;160)
 

sexta-feira, fevereiro 4

KANT: FILOSOFIA COMO SISTEMA E O A PRIORI – PROBLEMA TEÒRICO E PRÁTICO

Raphael Gondim Machado Lima(1)

Resumo: No presente artigo apontaremos a filosofia kantiana como um sistema que tem como preocupação fundamental o a priori. Tal cadeia de pensamentos envolve tanto o aspecto da razão teórica quanto o aspecto da razão prática. Este, por sua vez, dividido em ética e direito que têm, entre si, semelhanças e diferenças.
Palavras-chave: Kant, razão teórica, razão prática, ética e direito, a priori.

Abstract: In this paper we consider the Kantian philosophy as a system whose basic concern a priori. This train of thought involves both the aspect ratio as the theoretical aspect of practical reason. This, in turn, divided into ethics and law that have, between them, similarities and differences.
Keywords: Kant, theoretical reason, practical reason, ethical and right, a priori.

Introdução
Em ampla medida pode-se afirmar que o problema geral kantiano é aquele que pergunta sobre a possibilidade do a priori. Portanto, a grande preocupação de Kant sempre foi com a razão. Nos textos pré-críticos esta preocupação já era vista. Por exemplo, nos Sonhos de um visionário explicados pela metafísica, datado de 1766, Kant já parece ter uma diretriz para alcançar a solução da possibilidade da razão. Isto é constatado quando é assinalada na conclusão dos Träume a impossibilidade para se explicar a relação entre alma e corpo.

Nessa perspectiva, vê-se que nos Träume, Kant compara o sistema leibniz-wolffiano com os resultados alcançados por Swedenborg. Este acreditava que via e falava com espírito. Ele afirmava que os espíritos moviam objetos e que lhes transmitiam mensagens sobre catástrofes e pessoas. No entanto, apesar de Swedenborg ser um acadêmico respeitado tanto por era um catedrático de Matemática na Universidade de Uppsala quanto por seu reconhecimento enquanto cientista, como, também, pela vastidão e profundidade dos seus escritos sobre ciência, mesmo assim, Kant acreditava que Swenderborg padecia de alucinações.

Nos Träume, Kant qualifica as conclusões swedenborguianas de “loucuras dos sentidos” e relaciona com as conclusões de Leibniz e Wolff, chamando-as de “loucuras da razão”. Nestes termos, Kant critica todos os neo-cartesianos e afirma, veementemente, que nunca vamos poder solucionar os problemas da relação entre alma e corpo.

Sob essa ótica, quanto à alma, Kant acredita que ela é uma substância imaterial, tal qual foi provada por Descartes, que tem características próprias as quais são diferentes daquelas presentes no corpo, que é substância material. Com isto, então, em seu escrito de 1766, Kant já começava a fazer uma distinção entre mundo inteligível e mundo sensível.

Posteriormente, na dissertação de 1770, Kant faz a diferença entre mundo fenomênico e mundo noumênico, com uma concepção propriamente sua de espaço e tempo.

Logo, o problema kantiano, desde 1766 até as suas últimas obras, foi sempre com a razão. Neste sentido, no problema kantiano, há uma unidade interna (a possibilidade do a priori). Esta origina vários outros problemas articulados entre si, dentre eles o problema teórico e o prático. Concernente ao problema prático tem-se a relação entre o direito e a ética, onde, na filosofia kantiana, tanto um quanto o outro são deduzidos a partir da liberdade. Neste sentido, para Kant:
A dedução não é definida como cadeia de silogismos, mas, tal como uma peça jurídica, sua "prova" consiste na referência a um fato legitimador. Com efeito, elucida Henrich, se hoje chamamos de "dedução" apenas uma cadeia de silogismos (nesse sentido tendemos a interpretar a dedução de Kant), no século XVIII "dedução" era o nome de um instrumento jurídico, no qual a "prova" partia de um "fato". É de acordo com este modelo jurídico que Kant elaborou as deduções transcendentais tanto na Crítica da Razão Pura como na Crítica da Razão Prática.

No entanto, embora o direito e a ética sejam deduzidos da liberdade, a diferença entre um e outro reside no fato de que na ética a coerção é interna e enquanto que no direito é externa. Assim, o presente artigo terá como objetivo apontar a articulação (identidades e diferenças) entre esses dois aspectos como frutos de uma mesma raiz: a razão prática, onde, essa, tem uma intrínseca relação com a razão teórica.
1. O Problema Teórico

Acredita-se que o problema teórico kantiano foi um instrumento eficaz para Kant tentar solucionar uma questão que há muito lhe gerava incômodos: a razão prática. Portanto, não se pode argumentar em torno do problema prático kantiano sem fazer menção sobre o seu problema teórico. Este, por sua vez, pode ser dividido em duas questões:
1ª. A metafísica é possível como ciência?
2ª. Como são possíveis a física e a matemática como ciência?

Em outras palavras, Kant objetivava perguntar como o conhecimento a priori é possível na matemática e na física e não na metafísica. A preocupação kantiana com a possibilidade do a priori é indicada até mesmo pela forma como Kant elabora as perguntas: para a matemática e a física, Kant fornece um tratamento diferente daquele da metafísica; para esta é perguntado sobre a sua possibilidade e para àquelas é afirmado serem elas conhecimento científico, portanto o que ele indaga é sobre o modo de efetuar tal conhecimento.

É conveniente lembrar que, para a filosofia kantiana, ciência é conhecimento universal e verdadeiro. Logo, ele não poderia ser a posteriori, pois este é baseado, unicamente, na experiência e esta não garante a universalidade nem a necessidade de nenhum conhecimento. Então, o conhecimento científico só pode ser a priori.

Por que o conhecimento a priori é possível na matemática e na física e não na metafísica? Saber a resposta sobre a questão é se fazer a pergunta sobre a possibilidade de juízos sintéticos a priori, ou seja, juízos que têm uma necessidade diferente daquela da lógica formal e, por conseguinte, não se baseiam no princípio de não-contradição. Nisto ocorre a constatação de Kant que há juízos universais e necessários, mas que também são juízos de ampliação. E Kant afirma: “... a experiência nos ensina que uma coisa é isto ou aquilo, mas não que tal coisa pode ser de outro modo...”

E ainda acrescenta: “... não conhecemos a priori nas coisas senão aquilo que nós mesmos nelas colocamos...”

Com isto, nós vimos que o sujeito só pode conhecer a priori algo que ele representa. O que ele conhece da natureza é o modo como a realidade lhe aparece, isto é, ele só pode conhecer os fenômenos e não os noumenos. Neste sentido, a física e a matemática vão se ater a fenômenos. A metafísica, pelo contrário, objetiva conhecer as coisas através da razão pura e, por este motivo, na sua busca incessante por razões, ela produz antinomias.

Desta forma, na parte da Crítica da Razão Pura intitulada Dialética Transcendental, Kant nos fornece o resultado da busca incessante da razão e uma destas respostas torna-se um problema importante para que Kant funde a sua ética. Aqui ocorre a ligação que há entre a Crítica da Razão Pura e a Crítica da Razão Prática.

É na parte da Dialética Transcendental que trata sobre o mundo , Kant vai abordar a questão da liberdade, mostrando as antinomias cosmológicas, ou seja, aquelas que sustentam que o problema cosmológico é o da causalidade, e afirma: ‘A causalidade, segundo, as leis da natureza, não é a única donde possam derivar-se todos os fenômenos do mundo. Para explicá-los, é necessário admitir-se, ainda, uma causa livre.”

Como, também: “Não há liberdade, mas tudo se dá, no mundo, exclusivamente segundo as leis da natureza.”

Logo, com o acima exposto, o que Kant detecta é que a metafísica consegue demonstrar, para um só tema, respostas contraditórias. A contradição sobre o determinismo e a liberdade põe Kant em dificuldades, pois se ele recusa a causalidade, não há lei para a natureza e nem a ciência. Se Kant refuta a liberdade, não há ética. Caso ele não dissolvesse tal questão, nós teríamos que abrir mão do pensamento racional incluindo o ético.

A solução de Kant para o impasse acima mencionado tem como fundamento aquilo que ele denominou de inversão copernicana, isto é, o conhecimento fundado na análise do sujeito cognoscente, onde este é parte ativa no processo, impondo as suas intuições puras de espaço e tempo e os seus conceitos.

2. O Problema Prático
Loparic afirma que, “deve ser possível à razão humana decidir, com toda segurança, se um problema teórico é solúvel ou não, podendo chegar, caso o problema seja solúvel, ao conhecimento do que é procurado”. Nessa perspectiva, tal como foi acima exposto, o problema teórico kantiano, mesmo resolvido, ou seja, mediante a junção de intuições e conceitos, da liberdade restrita pelo fato do homem conhecer, somente, fenômenos – aquilo que ele representa, alguma coisa, para a filosofia kantiana, ainda faltava. O problema teórico kantiano parece ter sido um instrumento de ajuda para a solução do problema prático. Em outras palavras, a grande preocupação de Kant continuava sendo a ética.

No Prefácio da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, publicado em 1785, já se percebe qual seria a grande preocupação de Kant. Nesse livro ele indaga sobre a suma necessidade de se elaborar, de vez, uma filosofia moral. pura completamente expurgada de tudo quanto é empírico. Assim, a constatação que Kant chegou para responder a tal questionamento foi a seguinte: “As leis morais, com seus princípios, em todo o conhecimento prático diferenciam-se de tudo o que contenha algo de empírico; e (...) toda a filosofia moral (...) quando aplicada ao homem (...) fornece-lhe leis a priori.”

Sob essa ótica, para diferenciar e explicitar a origem das leis morais de tudo o que é empírico, Kant utiliza, inicialmente, na Fundamentação, o método do tipo analítico, porquanto a primeira seção da Fundamentação trata da transição do conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico e na segunda seção, Kant mostra a: transição da filosofia moral popular para a Metafísica dos costumes. Em seguida, e em sentido inverso, ou seja, sinteticamente, na terceira seção, Kant aponta o último passo da Metafísica dos costumes para a Crítica da Razão pura prática.

Portanto, na transição do conhecimento moral da razão do senso comum para o conhecimento filosófico, por exemplo, Kant vai afirmar que todas as qualidades superiores do homem estão relacionadas com a boa vontade. No conhecimento moral da razão humana vulgar alcançamos um princípio, mesmo sem ser concebido abstratamente, esse serve como padrão dos juízos. Portanto, para corroborar com isso, é evidente como o senso comum sabe distinguir, em todos os casos que se apresentem, o que é bom e o que é mau, o que é conforme ao dever ou o que é contrário a ele. Nessa perspectiva, constata-se que é a vontade de agir por dever. Logo, para se ter o verdadeiro valor moral, é preciso que toda a ação seja executada por dever. Onde o valor moral de uma ação “depende (...) unicamente de princípio do querer...” e” o dever é a necessidade de cumprir uma ação por respeito à lei.”

Neste sentido, segundo Kant, o homem deve se portar de modo que sempre queira que a sua máxima seja transformada em lei universal.

Então, o dever, para Kant, não é um conceito empírico e sim uma ordem a priori. Porém, no homem, a vontade não é perfeita, pois o ser humano, além de ter a característica da racionalidade, encontra-se submetido às inclinações da sensibilidade. Por este motivo, as leis da razão se apresentam como imperativos categóricos. Estes podem ser definidos da seguinte forma: “... procede como se a máxima de tua ação devesse ser erigida, por tua vontade, em lei universal da natureza.”

No entanto, embora na terceira seção da Fundamentação Kant vai se preocupar em justificar a possibilidade do imperativo categórico, é na Crítica da Razão Prática que a centralidade de tal aspecto vai existir. Nessa perspectiva, na Crítica da Razão Prática, Kant objetiva mostrar que a razão pura é prática no sentido em que ela fornece a lei em que toda moralidade vai se fundamentar, na qual a lei moral é totalmente independente da experiência. Neste sentido, a vontade determina a si mesma. Isto significa que ela é só a forma da lei, ou seja, aquilo que garante a sua universalidade. Para tanto, ela precisa ser livre, logo: “a liberdade e a lei prática incondicionada implicando-se mutuamente...” .

Por este motivo, a lei moral deve ser formulada da seguinte maneira: “age de modo tal que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal...” .

Assim, para Kant, a lei moral é um fato da razão, pois a consciência do dever é comum a todos os homens. Isto nos mostra que a razão é legisladora e que ela é livre, porquanto: “a autonomia da vontade é o princípio único de todas as leis morais e dos deveres conforme a ela.” .

Na filosofia kantiana, a característica da autonomia é enfatizada, porque se o homem partisse dos conceitos de bem ou mal para determinar a lei moral, ele teria que buscá-los na experiência, esta, contudo, não garante a necessidade e nem a universalidade de tais conceitos, logo: “o conceito do bem e do mal não devem ser determinados antes da lei moral (...), mas somente depois desta lei e por ela...” .

A decorrência da explicação acima é que os conceitos do bem e do mal são a priori e daí vem o problema de como o Bem e o Mal podem ser aplicados a objetos sensíveis, portanto, Kant responde:

Só o racionalismo do juízo se mostra adequado ao uso dos conceitos morais, pois que não toma a natureza sensível senão aquilo que também a razão pura pode conceber por si mesmo, a saber, a conformidade com a lei, e não introduz na natureza supra-sensível senão aquilo que, por seu turno, possa realmente traduzir-se em ações no mundo dos sentidos, segundo a regra formal de uma lei natural em geral .

Em suma, a pergunta central do problema prático kantiano é: por que eu devo? A resposta de Kant é: eu devo, porque sou um ser racional. O dever tem a sua fundamentação na razão, onde esta dita às suas próprias leis. As suas leis vêm através de um imperativo; isto ocorre, porque o homem não é somente um ser racional, ele é também sensível. Neste sentido, o ser humano é livre, pois ele impõe para si mesmo as suas leis, onde a vontade é o seu modo de causalidade. Ela é livre quando se autodetermina, com isto, ela é autônoma.

3. O Direito e a Ética
Quanto à razão prática, o projeto kantiano é deduzir, tomando como parâmetro o imperativo categórico, a ética e o direito. Para tanto:
O pertinente princípio de justiça, o da liberdade igual, é formulado por Kant na sua Rechtslehre/ Doutrina do direito ( § B ). O seu conceito moral do direito retoma o cerne da idéia de justiça, vale dizer a rigorosa imparcialidade. Ele vincula o princípio moral geral ( “lei universal da liberdade “) à condição de aplicação do direito, isto é, ao convívio (...) E Kant considera esse direito das pessoas a “menina dos olhos de Deus sobre a Terra” ( Vorlesung über Pädagogik/ Preleção sobre pedagogia, p. 490).

No entanto, embora Kant relacionando o princípio moral geral (“lei universal da liberdade“) à condição de aplicação do direito, há uma distinção fundamental entre a ética e o direito, ou seja, o fundamento da ética é o próprio dever; em contrapartida, o direito é determinado por elementos sensíveis. Nele é somente considerada a exterioridade das ações e “... O Direito é, pois, o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de cada um pode conciliar-se com o arbítrio de outrem segundo uma lei universal da liberdade...”. Assim, o direito está inscrito entre as relações intersubjetivas e ele encontra-se presente no campo das relações práticas do homem com outros homens, onde cumpre salientar que a ligação é entre dois arbítrios. Tal reação não ocorre segundo desejos, porquanto o arbítrio é a consciência da possibilidade de alcançar um fim determinado. Então:

Para constituir-se uma relação jurídica é necessário que aconteça o encontro não somente de dois desejos ou de um arbítrio com um simples desejo, mas de duas capacidades conscientes do poder que cada um tem de alcançar o objeto do desejo..

Assim, a relação de um arbítrio com o outro considera, apenas, a forma e não a matéria na relação dos dois arbítrios. Assim, o direito não vai se preocupar com os fins individuais ou utilitários do sujeito, mas, somente, em prescrever as formas na relação dos arbítrios; a preocupação é a de como se deve fazer.

Nestes termos, o problema kantiano é o que o direito deve ser, isto é, Kant vai se preocupar com a questão da justiça, isto é, “... do critério com base no qual seja possível distinguir o que é justo do que é injusto...”. Assim, a preocupação kantiana é com o que deveria ser o direito e sua correlação com o ideal de justiça. Isto leva a considerar que mesmo que não exista nenhuma legislação que corresponda ao seu ideal de justiça, a definição kantiana do que é justo continuará verdadeira, porquanto ela só indica o ideal que o legislador deveria adequar-se.

O ideal de justiça de Kant pode ser definido como justiça e liberdade. Desta forma, o direito é, assim, entendido como limite à liberdade individual, só assim todos os membros da associação podem usufruir de uma igual liberdade sempre compatível com a do outro. O que importa é a relação mútua dos arbítrios e a universalidade da lei. Nisto ocorre a coexistências de liberdades externas e Kant afirma:
Se, portanto, a minha ação ou, em geral, o meu estado pode coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal, aquele que me coloca impedimentos comete perante a mim um acto injusto; pois que esse impedimento (essa resistência) não pode coexistir com a liberdade segundo leis universais... ).
Portanto, continua Kant:
A lei universal do Direito é: age exteriormente de tal modo que o uso livre do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal; esta é, na verdade, uma lei que me impõe uma obrigação, mas que de todo não espera, e muito menos exige, que deva eu próprio restringir a minha liberdade a essas condições em virtude dessa obrigação, mas, pelo contrário, a razão diz apenas que a liberdade, na sua idéia, encontra-se limitada a tal requisito e que ela pode, no plano dos factos, ser limitada por outros...

Neste sentido, o direito de cada um vai até onde começa o do outro, onde a universalidade da lei é dada a priori, fundada na liberdade que é autonomia e o problema que se apresenta aqui é o de conciliar liberdade com coação. Assim, a coação não invalida a liberdade, porquanto ela vai de encontro ao que é injusto. Ela é contrária a tudo que é contra a liberdade e a noção de direito é relacionada à noção de coação, pois o dever jurídico é a ação conforme o dever. A obrigação jurídica, então, deve basear-se na razão prática, onde a autonomia é a exigência de participação de todos na legislação.

Assim, segundo Kant, a passagem do estado de natureza ao estado civil é um dever para o homem; é a constituição do Estado, onde esta é uma exigência prática. Isto tudo acontece por meio de um contrato originário.

O contrato originário não é um fato histórico, mas uma idéia da razão, um princípio ideal que justifica racionalmente o Estado. Então, nele todos deixam a liberdade externa para retomá-la novamente como membro do estado, abandonando uma liberdade selvagem para conseguir uma liberdade que advém da vontade de legislar. Trata-se, então, de submissão à lei que o próprio homem se dar, ou seja, trata-se de ter liberdade com autonomia.
Em suma:
Com o imperativo categórico, com a idéia do contrato originário e com a formulação do princípio universal do direito, Kant abre a perspectiva do procedimentalismo e do formalismo universalista, podendo afirmar a prioridade do justo ( insistindo no universalismo que permite a coexistência de uma pluralidade de concepções do que seria a vida boa ) sobre o bem ( ou seja, concepções particulares do que seria a vida boa, a felicidade ). Essas idéias são retomadas e transformadas de maneiras distintas por Rawls e Habermas...

Considerações Finais
O ponto de ligação entre o problema teórico kantiano e o problema prático é a questão da fundamentação. Na questão teórica eram evidentes o crescimento da ciência no século XVII e o decréscimo da metafísica, mas o que não ficava claro era por que um conhecimento a priori como o científico alcançava verdades e o conhecimento metafísico, também a priori, não as alcançava. Logo, Kant constatou que a ciência considerava, apenas, os fenômenos e seus juízos eram sintéticos a priori e a metafísica gerava antinomias e, desta maneira, contrariava até mesmo um de seus princípios mais fundamentais: o princípio da não-contradição.

Constatada a questão de que a metafísica não poderia ser considerada como conhecimento, Kant, ainda acreditava que os seus temas eram fundamentais para o ser humano, como, por exemplo, o da liberdade.

Assim, tanto como foi feito na ciência, Kant procurou fundamentar a metafísica em algo que não fosse transcendente. A razão passa a ser tratada, então, de outra forma.

E, para tanto, Kant pergunta: como pode a razão teórica determinar o conhecimento e a razão prática determinar a vontade?

Neste sentido, a razão determina o conhecimento através de intuições puras de espaço e tempo e de categorias. Por conseguinte, isto remete a um sujeito, a um eu penso e a uma necessidade fenomênica.

No âmbito da razão prática, as noções de legalidade, vontade, autonomia e liberdades estão vinculadas. Onde a vontade é um modo de causalidade, na qual a liberdade é sua propriedade, por este motivo ela se autodetermina e é autônoma. A sua validez é para todo o ser racional.

Logo, Kant só chega à idéia fundamental da filosofia prática que é aquela causalidade por liberdade, porque discutiu a causalidade fenomênica.

Nessa perspectiva, o filósofo de Koenigsberg crê que a razão prática é autônoma, assim ele procurará um princípio justificador para algo que o senso comum já sabe, mas não conhece o porquê. Daí é que surge o título da sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes.

Tanto na Fundamentação da Metafísica dos Costumes quanto na Crítica da Razão Prática é afirmado que a tradição filosófica prática sempre utilizou imperativos hipotéticos como a felicidade, a beatitude, o prazer, o bem-estar, a perfeição ou a glória de Deus. Baseado nisto podemos inferir que a tradição não tinha uma Ética. Ela era desprovida de tal saber, pois, além de não fundamentá-lo coerentemente, restringia-se a um princípio subjetivo da vontade, decorrendo disto uma pluralidade de matérias ou fins usados em função da realidade de um fim particular, qual Kant denomina de material. Isto é relacionado como algo subjetivo, válido, somente, para uma vontade humana incapaz de fornecer a universalidade e a necessidade requeridas para uma lei moral, mostrando-se, assim, insuficiente como princípio supremo de moralidade onde o caráter universal e necessário tem que prevalecer.

Em suma, a razão prática pura descobre o seu princípio na forma pura da razão, de maneira autônoma, a partir do imperativo categórico. Só, desta maneira, pode-se fundamentar a moralidade e afirmar que o fato da razão é apoditicamente certo. Ele é visto através do senso comum, mas não é através desse fundamentado. Esses fundamentos são a priori, eles estão estabelecidos por si mesmos. Caso contrário, não haveria tais princípios para o juízo moral, pois se eles fossem a posteriori não poderiam ser universalizados.

Quanto à universalidade dos princípios da razão prática, o projeto kantiano é amplo, porquanto, dentre outras coisas, relaciona a ética com o direito. Nessa perspectiva, na Metafísica dos costumes: “Depois da crítica da razão prática devia seguir-se o sistema, a metafísica dos costumes, a qual se divide em primeiros princípios metafísicos da doutrina do direito e em primeiros princípios metafísicos da doutrina da virtude” Mas, em ampla medida, o que relaciona a ética ao direito? Kant afirma ser um tipo de liberdade que tem a própria liberdade como causa. Portanto, é na questão da liberdade que esses dois âmbitos da razão prática coincidem. Quanto ao direito, este está relacionado com a coexistência das liberdades. Portanto, para Kant, as ações dos homens podem coexistir com a liberdade de cada um segundo a lei universal do Direito que diz: age exteriormente de tal modo que o uso livre do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal; esta, embora impondo uma obrigação, não exige, que se deva restringir a liberdade de um homem a essas condições em virtude dessa obrigação, mas a razão, somente, afirma que a liberdade, na sua idéia, encontra-se limitada a tal requisito e que ela pode, no plano dos fatos, ser limitada por outros. Portanto, é nesse ponto que se constata a distinção que Kant faz entre direito e moral, porquanto a determinação moral é interna à pessoa, enquanto que a determinação do direito ocorre no âmbito externo à pessoa. No entanto, tanto o direito como a ética tem leis universais, por esse motivo só podem ser justificados a priori e sem dados heterônomos.

Portanto, tudo o que não é lei na filosofia prática kantiana pode-se, panoramicamente, relacionar com a palavra heteronomia. Com ela se entende a decorrência e a dependência da vontade às causas e interesses externos. Os princípios heterônomos podem ser empíricos ou racionais. Os primeiros baseados no sentimento físico ou moral. Os segundos baseados na perfeição relacionada à vontade do homem ou baseados em um conceito de perfeição independente advindo de Deus o qual é causa determinante da vontade do ser humano. Neste caso, quando a ação do homem é vista determinada diretamente através da inclinação heterônoma da vontade para objetos sensíveis, tal fato não fundamenta a lei prática.

Em suma, a questão da universalidade ou do apriorismo dos princípios da razão prática (tanto na ética quanto no direito) somente foi possível após o problema teórico kantiano ter sido solucionado. Precisou Kant fornecer limites à razão no conhecimento teórico para constatar que a liberdade fenomênica não era o único tipo de liberdade possível e que existia um tipo de causalidade que se poderia admitir como livre. Tal causalidade é que pautava a razão prática tanto na ética quanto no direito. Portanto, nesse sentido é que se pode afirmar um caráter sistêmico na teoria kantiana visto que ao Kant enfatizar, o problema teórico, por exemplo, tal fato tinha uma ligação intrínseca com os problemas pertinentes à razão teórica e vice-versa, sendo assim o suporte entre os vários aspectos de sua teoria é mútuo configurando-se como uma cadeia interdependente de pensamentos.

Referência Bibliográfica
BOBBIO, N. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. Brasília: UNB, 1992.
GONDIM, E. Kant e o problema do comércio psicofísico nos Sonhos de um visionário explicados pelos sonhos da metafísica. Dissertação de mestrado, São Paulo: PUCSP, 1998,
GONDIM, E; MARRA, O. Rawls. A Justiça e a Sociedade: Nova Revolução Copernicana, 2009. Disponível: http://www.revistaautor.com
HABERMAS, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2004.
HÖFFE, O. O Que é Justiça? Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
_____. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
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KLOTZ, C; NOUR, S. Dieter Henrich, leitor de Kant: sobre o fato legitimador na dedução transcendental das categorias. Kriterion , vol.48, n.115, 2007.
LOPARIC, Z. Os problemas da razão e a semântica transcendental. In: Perez, Daniel Omar (org.), Kant no Brasil, São Paulo: Escuta, 2005.
PORTA, M. A Filosofia a partir de Seus Problemas. São Paulo: Loyola, 2002.
TERRA, R. Kant & o Direito. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2004.

(1) Bacharel em Direito pela UESPI – Universidade Estadual do Piauí.
Fonte: REVISTA INTERNACIONAL DIREITO E CIDADANIA

quinta-feira, fevereiro 3

Percepção e Linguagem em Merleau-Ponty e Wittgenstein

Tania Eden

Em sua última obra intitulada O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty toca numa ferida da assim chamada virada linguística: "só conseguimos reduzir a filosofia a uma análise da linguagem se assumirmos que a linguagem contém sua evidência em si mesma" (Merleau-Ponty 1986, pg. 131). A linguagem é um instrumento de concepção do mundo, mas sua função de deduzir esse mundo não se esgota naquilo que pode ser obtido a partir de uma análise dos nossos significados de palavras lexicais. Como diz Austin, uma análise da linguagem não é de modo algum considerada como um fim em si mesmo. Uma "fenomenologia da linguagem" deve levar em conta o fato de que as distinções linguísticas são provenientes de um procedimento de escolha histórico, i.e., "um longo teste de sobrevivência do mais apto" que nos ensina, na discussão incessante com o mundo à nossa volta, a colocar em ação o instrumento ‘linguagem’ do modo mais eficiente possível (Cf. Austin 1977). O conhecimento, na relação recíproca homem/mundo, que não é adequadamente concebido nem como resultado do uso de dados empíricos nem através da suposição de uma natureza determinada racionalmente, torna necessário, para Merleau-Ponty (cf. Merleau-Ponty 1966, pg. 489), um novo conceito de sentido e de ação que se apõe tanto ao idealismo linguístico quanto ao esquema behaviorista estímulo-resposta. Sentido e significado não estão ligados a realizações linguísticas; antes, eles são imanentes a todos os modos de ação e vivência. Na medida em que a teoria da Gestalt, através da diferenciação entre figura e fundo, aponta para os trabalhos de formação e estrururação pré-linguísticos, ela se configura como paradigmática para a tentativa de esboçar uma genealogia do significado linguístico. Diante desse pano de fundo, a discussão de Wittgenstein - na segunda parte das Investigações Filosóficas e nas Considerações sobre a Filosofia da Psicologia -, sobre a apresentação da psicologia da Gestalt de Köhler (Köhler 1975), adquire um significado especial.
(1) Já na Estrutura do Comportamento, Merleau-Ponty reduz a concepção de comportamento à consciência perceptiva (MP 1976). Uma teoria do comportamento sem uma teoria da percepção é impensável. Entre uma estrutura de comportamento e uma de percepção existe uma relação de reciprocidade: o espaço do comportamento humano está, de um lado, limitado pela percepção, que media a nossa relação com o mundo e se constitui no pano de fundo ineliminável de todas as nossas atividades. Por outro lado, o campo da percepção, que se aperfeiçoa apenas através do nosso agir vivente, oferece orientações. Para Merleau-Ponty, o corpo individual é aquela zona de mediação na qual o limite entre o interno e o externo, entre o puro ato de consciência e o mero mecanismo corporal se confundem. O conceito de estrutura da teoria da Gestalt confirma a ambigüidade. Estruturas não são nem idéia nem coisa. Elas se organizam espontaneamente em totalidades irredutíveis, que são constitutivas de significado, mas não significados intelectuais. Numa perspectiva merleau-pontiana, as seguintes questões críticas podem ser dirigidas a Wittgenstein: o discurso do ‘comportamento’ resiste à ‘retificação’ social, enquanto expressão quasi-naturalista das vivências psíquicas, sem levar em conta o fato de que também "o nosso agir, que se funda no jogo de linguagem" (Über Gewissheit, parag. 204), encontra um limite naqueles horizontes e perspectivas que são representadas pela percepção? Uma teoria da percepção não poderia, ao contrário, contribuir para especificar mais detalhadamente a relação entre jogo de linguagem e forma de vida?
(2) Inversamente, a teoria do "sentido encarnado" (Waldenfels 1983, cap. 3.) de Merleau-Ponty poderia se enriquecer se a ela subjazer uma crítica analítica da linguagem. Merleau-Ponty também fala daquilo que gira em torno de conexões funcionais entre os organismos e o seu meio ambiente, a saber, a intencionalidade. A ela corresponde o princípio básico de Husserl de uma intencionalidade "atuante", que não é uma intencionados de atos conscientes, mas sim que fundamenta uma "unidade natural, ante-predicativa do homem e do mundo" (MP 1966, pg. 15). Tendo em vista que Merleau-Ponty estende o âmbito do intencional ao agir motor, afetivo e sexual, o processo de constituição de sentido pode também ter lugar na espontaneidade corporal e substituir o ‘eu penso’ cartesiano pelo ‘eu posso’ originário (ibid., pg. 166). A concepção de uma intencionalidade fundada no corpo e perceptiva torna possível a Merleau-Ponty estabelecer um contínuo genealógico entre a organização física da percepção e sua interpretação simbólica e cultural (Metraux 1986, pg. 232). Esse uso inflacionário do conceito de intencionalidade faz com que conceitos como ‘sentido’ e ‘significado’ se tornem imprecisos, de modo que a desejada transição de um sentido concreto e corporal para o significado linguístico não possa mais ser realizada teoricamente. Uma teoria que associa uma função constitutiva de sentido a reflexos físicos e meras figuras corre o risco de confundir o sentido não-proposicional com o sentido proposicional de ‘perceber’. Wittgenstein deixa claro, com o exemplo do ‘ver-asepcto’, que uma tal confusão leva a dificuldades insolúveis. Se a afirmada auto-organização da percepção de si, por parte do teórico da Gestalt, fosse gerada a partir de algo como o significado, então teria de ser possível que alguém que conhece um coelho mas não um pato, diante da figura pato-coelho, considere ainda um outro aspecto à parte do ‘aspecto-coelho’, mesmo que ele não tenha nenhuma palavra para o segundo, i.e., o ‘aspecto-pato’ (Bemerkungen über die Philsophie der Psychologie, parte I, pg. 70). O discurso a partir de meras figuras corre o risco de contrariar o nosso uso ordinário da linguagem. A suposição de que eu percebo primeiramente um algo determinado não se harmoniza com o modo como nós usualmente conferimos expressão a nossas experiências visuais. Eu afirmo ver um coelho, não uma figura ou um objeto visual a partir do qual eu posso depois afirmar que fora um coelho o que, naquele momento, eu via na figura.
(3) Faz parte de uma teoria fenomenológica da intencionalidade que a experiência é uma transcrição do vivido atual e comum (Husserl 1963, parag. 20). A idéia de uma intencionalidade constitutiva de sentido, que se move em horizontes abertos de interpretações potenciais do percebido, corresponde à idéia de que o homem possui a capacidade de negação. Ele pode romper sistemas de regra existentes e criar novos. Isso vale também para a linguagem. O fato de que sinais linguísticos possam ser empregados de maneira imprevista é, por sua vez, constitutivo de significado. Novos jogos de linguagem podem modificar nossa forma de vida. Cada emprego de um conceito contribui para sua formação. A multiplicidade de possibilidades de uso de nossas relações com o meio linguístico dá margem à concepção de uma "linguagem atuante", que tanto cria algo de novo quanto se deixa ela própria ser provocada pelos dados e estimulada para essa atividade produtiva. Para Merleau-Ponty, aprende-se a conhecer uma tal linguagem efetiva ou atuante apenas de dentro e através da práxis (MP, 1986, pg. 168). E, de fato, Wittgenstein afirma na Gramática Filosófica que compreender uma linguagem significa ter presente o simbolismo com o qual a linguagem pode falar por si mesma.
in Casati, G. (et allia)(ed.) (1993): Philosophie und die cognitiven Wissenschaften, Kirchberg: Österreichischen Ludwig Wittgenstein Gesellschaft, pgs. 123-6.

quarta-feira, dezembro 29

Pierre Bourdieu

O sociólogo francês detectou mecanismos de conservação e reprodução em todas as áreas da atividade humana, entre elas o sistema educacional


Foto:
Foto: As pesquisas de Bourdieu exerceram forte influência na Educação durante os anos 70 e 80

As pesquisas de Bourdieu exerceram forte influência na Educação durante os anos 70 e 80



Frases de Pierre Bourdieu:
“Não há democracia efetiva sem um verdadeiro poder crítico”

 


“Nada é mais adequado que o exame para inspirar o reconhecimento dos veredictos escolares e das hierarquias sociais que eles legitimam”


Pierre Bourdieu nasceu em 1930 no vilarejo de Denguin, no sudoeste da França. Fez os estudos básicos num internato em Pau, experiência que deixou nele profundas marcas negativas. Em 1951 ingressou na Faculdade de Letras, em Paris, e na Escola Normal Superior. Três anos depois, graduou-se em filosofia. Prestou serviço militar na Argélia (então colônia francesa), onde retomou a carreira acadêmica e escreveu o primeiro livro, sobre a sociedade cabila. De volta à França, assumiu a função de assistente do filósofo Raymond Aron (1905-1983) na Faculdade de Letras de Paris e, simultaneamente, filiou-se ao Centro Europeu de Sociologia, do qual veio a ser secretário-geral. Bourdieu publicou mais de 300 títulos, entre livros e artigos. Fundou as publicações Actes de la Recherche en Sciences Sociales e Liber. Em 1982, propôs a criação de uma “sociologia da sociologia” em sua aula inaugural no Collège de France, levando esse objetivo em frente nos anos seguintes. Quando morreu de câncer, em 2002, foi tema de longos perfis na imprensa européia. Um ano antes, um documentário sobre ele, Sociologia É um Esporte de Combate, havia sido um sucesso inesperado nos cinemas da França. Entre seus livros mais conhecidos estão A Distinção (1979), que trata dos julgamentos estéticos como distinção de classe, Sobre a Televisão (1996) e Contrafogos (1998), a respeito do discurso do chamado neoliberalismo.

Embora a maioria dos grandes pensadores da educação tenha desenvolvido suas teorias com base numa visão crítica da escola, somente na segunda metade do século 20 surgiram questionamentos bem fundamentados sobre a neutralidade da instituição. Até ali a instrução era vista como um meio de elevação cultural mais ou menos à parte das tensões sociais. O francês Pierre Bourdieu empreendeu uma investigação sociológica do conhecimento que detectou um jogo de dominação e reprodução de valores.

Suas pesquisas exerceram forte influência nos ambientes pedagógicos nas décadas de 1970 e 1980. “Desde então, as teorias de reprodução foram criticadas por exagerar a visão pessimista sobre a escola”, diz Cláudio Martins Nogueira, professor da Universidade Federal de Minas Gerais. “Vários autores passaram a mostrar que nem sempre as desigualdades sociais se reproduzem completamente na sala de aula.” Na essência, contudo, as conclusões de Bourdieu não foram contestadas.

Na mesma época em que as restrições a sua obra acadêmica se tornaram mais freqüentes, a figura pública do sociólogo ganhou notoriedade pelas críticas à mídia, aos governos de esquerda da Europa e à globalização. Ele costuma ser incluído na tradição francesa do intelectual público e combativo, a exemplo do escritor Émile Zola (1840-1902) e do filósofo Jean Paul Sartre (1905-1980).

Valores incorporados

 

O livro A Reprodução (1970), escrito em parceria com Jean-Claude Passeron, analisou o funcionamento do sistema escolar francês e concluiu que, em vez de ter uma função transformadora, ele reproduz e reforça as desigualdades sociais. Quando a criança começa sua aprendizagem formal, segundo os autores, é recebida num ambiente marcado pelo caráter de classe, desde a organização pedagógica até o modo como prepara o futuro dos alunos.

Para construir sua teoria, Bourdieu criou uma série de conceitos, como habitus e capital cultural. Todos partem de uma tentativa de superação da dicotomia entre subjetivismo e objetivismo. “Ele acreditava que qualquer uma dessas tendências, tomada isoladamente, conduz a uma interpretação restrita ou mesmo equivocada da realidade social”, explica Nogueira. A noção de habitus procura evitar esse risco. Ela se refere à incorporação de uma determinada estrutura social pelos indivíduos, influindo em seu modo de sentir, pensar e agir, de tal forma que se inclinam a confirmá-la e reproduzi-la, mesmo que nem sempre de modo consciente.


Pierre Bourdieu 

Sociólogo francês, nascido em 1930 e falecido em 2002, foi professor na Escola Prática de Altos Estudos de Paris começando por desenvolver trabalhos na área da etnologia.
As suas investigações incidiram fundamentalmente na relação entre o sistema social e o sistema de ensino, isto é, existiria uma relação entre a classe social e a carreira escolar e profissional das pessoas (teoria da reprodução social). Para além disso, a escola valoriza aqueles que possuem uma "herança cultural" e é facilitada a aprendizagem a todos os que possuem o capital cultural. De entre as suas obras pode-se destacar: Les Heritiers, les Étudiants et la Culture , L' Amour de l'Art e Le Métier de Sociologue . Traduzidas para o português: O poder simbólico , Regras da Arte e Razões Práticas; Sobre a Teoria da Acção; Sobre a Televisão

sexta-feira, dezembro 3

Este é o jardim que a ausência permite

1. Esta é uma história de começos: do dia, da semana, da luz, da vida. Ausente o jardineiro, resta o jardim que a ausência permite. Como se o corpo de Jesus apenas se mostrasse retirando-se de um real impossível de descrever sob a alternativa da presença e da ausência, do visível ou do invisível. Porém, é este retirar-se que desperta nos discípulos uma fé capaz de acreditar sem ver. Aquilo que se vê não é aquilo em que se acredita.


2. Há um modo de aparência de Jesus que vai desaparecer no túmulo. O corpo físico deixará de ser o lugar de reunião dos discípulos, o pastor deixará de reunir as suas ovelhas; ferido o pastor, as ovelhas serão dispersas. Como um perfume que se evapora, uma flor que murchou. Judas não entrega apenas um corpo a ser morto e enterrado como um cadáver. Dos Doze, há apenas traços: um que o traiu, e Pedro que segue de longe. Todos o abandonaram e fugiram. Resta um jovem que o seguiu, envolto apenas num lençol. Agarraram-no, mas ele, largando o lençol, fugiu nu.


3. De manhãzinha acorrem as mulheres ao túmulo. Que vêem? Um jovem “sentado à direita”, vestido com uma veste branca, nada normal no modo de vestir de um jovem. A Escritura não diz que é um anjo, nem o efeito que a visão provoca sobre as mulheres – o medo -  faz dele um anjo. Donde vem ele? Do Getsémani: vemo-lo a correr nu. “Procurais o Crucificado? Ressuscitou, não está aqui”. Não há no túmulo nada do que esperava encontrar. A morte não está no lugar onde a conhecemos e a vida não está onde supomos que ela esteja. “Eis porque não há mortos, só há incógnitas” (M.G. Llansol).


4. O Mestre deixou de estar lá para reunir os discípulos. Quem guardará a palavra? Tudo parece recomeçar com o jovem vestido de branco: se a sua palavra for lembrada e escutada, vai ser ela a reunir aqueles que na Galileia constituem o seu “corpo”: o corpo que saiu do túmulo é um corpo dito e acreditado sobre a palavra, como na última ceia do “mestre” com os “Doze”. A voz está indissoluvelmente ligada à mnémé, a memória absorvente. E quando memorizo assim a voz de outrem, quando a regenero em mim, estou perto de a rememorar – quase sem mim. A palavra continua à solta, como  no templo, à espera de uma nova escuta.


5. Não se veja neste jovem o Anjo da Melancolia, andrógino, imóvel, a olhar para trás: a lei, o deserto, a morte. Algo liga este jovem ao mundo da transfiguração. O passado tem clareiras por onde seguir, tem rios, mas só o presente salvo é lugar de navegação para o mar que a ressurreição abriu. A fala do jovem vestido de branco reorienta a procura das mulheres: elas procuram o crucificado. Ora, o seu corpo não está lá, precede-as na Galileia. Elas terão de dizer que ele está algures, precedendo-os, e que este novo modo de presença do “Crucificado” exige uma deslocação. Elas terão também de relembrar as palavras que ele deixou para deixar aberto nos discípulos um lugar para um lugar imprevisível. A figura do jovem representa o movimento que é a essência do sensível, e no mesmo lance a permanência e a transformação, a adaptação e a mobilidade. É como esse tronco que vemos em Is 6, sobre o qual se fará a regeneração. A permanência é o seguimento de Jesus, sem o que todos os demónios se disputam o desejo dos espectadores. O que é transformado é o modo deste seguimento ao longo da história, ilustrada por uma multidão de testemunhos
.
6. Em vez de embalsamar um cadáver, as mulheres devem ir falar desta nova presença de Jesus que lhes escapa ainda. Vemo-las “traumatizadas e em “êxtase”. Tudo o que sabiam (elas e nós) da vida é ferido de incerteza e de interrogações. Que é então a vida se doravante aquele que estava crucificado e que está vivo se manifesta ao mundo? Era preciso passar por este êxtase que consiste em perder toda a forma de rentabilização da morte de Jesus (como a do perfume), para entrar no universo de sentido para qual nos convoca a palavra de Jesus e as citações da Escritura. Sobre o jardim que a ausência permite nasce um dia novo: o Cristo ressuscitado abriu uma brecha no mundo de todas as idades.


7. Todos aqueles para quem Jesus ressuscitou estão sujeitos à prova do reconhecimento porque doravante ele se assemelha ao pai, transfigurado pela Ressurreição. Para ver o Pai precisamos de novos olhos. O convite é para contar a desaparição do cadáver de Jesus, para testemunhar da presença do seu corpo na ceia da aliança que o perpetua. A vida corporal de Jesus perdeu-se como o perfume precioso, para que apareça um novo valor na relato a fazer. A morte de Jesus não pode ser reduzida à sua dimensão sacrificial, sobretudo se entendida como valor mercantil em troca pelo peso do pecado. A morte de Jesus tem de ser entendida como um sinal a interpretar e a memorizar. A dificuldade para compreender não é intelectual, é a expressão de uma resistência interior que não sabe ver a vida onde ela se manifesta.


8. O perfume derramado sobre a sua cabeça não é sacrificado para a sua sepultura; antes, em vez do perfume vem o relato, a palavra que o memoriza. Da mesma forma, o corpo entregue, abandonado, sepultado e perdido não é simplesmente sacrificado para pagar a nossa libertação, a sua perda abre um espaço novo para voltar a ouvir a palavra de Jesus. A ressurreição não vem neutralizar a morte de Jesus. Jesus não defendeu a vida que lhe foi tirada, como algo a recuperar mais tarde. Uma falha instauradora marcará para sempre o “corpo” dos crentes. Há um corpo a abandonar de que os soldados se apropriam, um corpo embalsamado que as mulheres não reencontram: há o relato de um “outro” Jesus a tornar presente numa ceia ritual, um “corpo” capaz de atravessar a morte, como a figura do “jovem”.


9. Nós somos espectadores do mundo e produtores das aparições deste mundo e de todo um outro mundo. A condição do espectador é a de um sujeito que está continuamente a mudar de lugar. O olhar do espectador (e do crente) é movimento se ele quer escapar à paralisia da morte. Assim o diz a experiência das mulheres naquela manhã, assim o diz a nossa experiência de crentes, obrigados que estamos a uma verdadeira hermenêutica da reminescência que só post factum Resurrectionis se cumpre, obrigados que estamos ao testemunho: afinal, os únicos testemunhos de Deus somos nós. Nós somos os iniciados duma passagem com um fim à vista. Aquilo que codifica a base da compreensão não é a percepção pelos sentidos, mas os afectos. O Espírito que Jesus promete aos discípulos tem por missão “ensinar-lhes tudo” e “relembrar-lhes tudo” o que ele lhes disse (Jo 14,26). Que o Espírito nos dê a mão para atravessar o cabo da ressuscitação, sem êxtases inúteis, nem terrores. O luto para quem acredita é azul, não é preto. A ressurreição é o triunfo profano do pensamento dos mortais sobre qualquer ficção imortalizante ou imortalizada (M. J. Mondzain). Toquem os sinos que acordem o mundo da melancolia que é a tentação do deserto, e que o perfume do alecrim invada este lugar onde se celebra a Páscoa!





José Augusto Mourão, dominicano, escritor, é professor na Universidade Nova de Lisboa, co-director do CICTSUL - Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa, presidente do ISTA - Instituto S. Tomás de Aquino, e coordenador do TriploV.