“Quando você acha que sabe todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas…”

domingo, outubro 3


ESTÉTICA DA FILOSOFIA EM DELEUZE

NOTAS ADORNIANAS SOBRE A TEORIA DELEUZIANA DA
 CRIAÇÃO DO CONCEITO FILOSÓFICO
[QUIOCOangolaCORTE]

João Ricardo Moderno *




         Gilles Deleuze e Félix Guatarri suscitaram um debate internacional a partir de 1991 com a publicação de “Qu’est-ce que la philosophie”, que até hoje o meio filosófico internacional se faz sensível e reverbera produtivamente, ainda que nem sempre criticamente. No Brasil, o pensamento deleuziano tem trânsito livre em todas as áreas de letras e ciências humanas das universidades, e as faculdades de filosofia em especial o transformaram num credo acrítico ingênuo e reificado que termina por  impor um silêncio sobre as conseqüências filosóficas desde as mais penetrantes até as mais superficiais. Veremos mais adiante que essa tendência acrítica é aquela apontada por Theodor W. Adorno como o mal entendido da filosofia como concepção do mundo. Tendência internacional de tomar filósofos como ídolos da indústria cultural ou de time de futebol e a filosofia como hobby, diletantismo ou um profissionalismo inconseqüente pois na verdade segue o ídolo mas não é capaz de criar conceitos, nem mesmo aqueles da filosofia como concepção do mundo, somente repetindo-os à exaustão.[1]
         Se, de fato, conforme confessa Deleuze, a bibliografia relativa ao conceito de filosofia é muito reduzida, é de se estranhar que ele tenha preferido ignorar justamente um dos raros livros que tratam do assunto, e justamente de um dos maiores nomes da filosofia contemporânea, Theodor W. Adorno, com a sua “Terminologia Filosófica I e II”, resultado das gravações de sua aulas na Universidade de Frankfurt nos primeiros anos da década de 60. Aqui Adorno propõe a descoagulação dos conceitos filosóficos já tornados sem vida ao longo da história da filosofia, não podendo ter sido ignorado por Deleuze, para quem «não se faz nada de positivo, mas nda tampouco no domínio da crítica nem da história, quando nos contentamos em agitar velhos conceitos já prontos como esqueletos destinados a intimidar toda criação, sem ver que os antigos filósofos aos quais nós os tomamos  já faziam  o que se quer impedir os modernos de fazer : eles criavam seus conceitos, e não se contentavam de limpar, de raspar o osso, como o crítico ou o historiador de nossa época.  Mesmo a história da filosofia é totalmente desinteressante se ela não se propõe a despertar um conceito adormecido, de rejogá-lo em uma nova cena, mesmo que ao preço de virá-lo contra ele próprio. »[2] Descoagular conceitos ou acordá-los do sono da história da filosofia são tarefas muito semelhantes, contudo a solução de cada um é totalmente diversa do outro.
         A resposta fundamental é que “a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos » (p.8), inspirada em Nietzsche, e nuançada com a seguinte afirmação: « O filósofo é o amigo do conceito, ele está em potência de conceito. Isto quer dizer que a filosofia não é uma simples arte de formar, de inventar ou de fabricar conceitos, porque os conceitos não são necessariamente formas, achados ou produtos. Mais rigorosamente, a filosofia é a disciplina que consiste em criar conceitos. (…) Criar conceitos sempre novos, esse é o objeto da filosofia. » As duas afirmações apesar de aparentemente contraditórias se completam. Se a filosofia é criação de conceitos é porque ela tem uma identidade explícita com a arte, atividade tipicamente de criação, logo, a filosofia não deixaria de ser, seguindo a definição deleuziana, uma arte de formar e de inventar, típica da arte, e uma arte de fabricar, típica do artesanato, e ambas voltadas para o conceito. Sendo criação, a filosofia toma algo da arte, pondo a imaginação criadora a serviço da razão filosófica. Toma emprestado da arte a vocação para criar, não criar obras de arte, mas conceitos, que são obras filosóficas. Contudo, apesar da ressalva de Deleuze que conceitos não são formas em sentido estrito, o termo filosófico é uma palavra que funciona como sujeito do conceito, acompanhada de um predicado que é a sua explicitação. Há uma forma verbal sintética no nome e um conjunto de formas verbais que o sustentam. Não sendo pura criação, domínio próprio da arte, a filosofia deve buscar conciliar dentro de si mesma outras origens, não restringindo-se à pura “sensibilia”, ainda que não a recusando. Entretanto, a criação de conceitos não pode ser uma atividade autotélica, uma finalidade sem fim determinado como na estética de Kant a propósito da obra de arte. Portanto,  criar conceitos novos não pode ser o objeto da filosofia, pois haveria uma identidade narcísica do sujeito com o objeto filosófico. A finalidade da filosofia não pode ser ela mesma, mas sim o que não é ela, em busca de um objeto exógeno, que são as coisas do mundo. Concluindo de Kant, através da Crítica da Razão Pura, Adorno afirma que “as coisas nos são dadas nos conceitos, mas não pelos conceitos”. O conceito deve representar um conjunto de coisas. Criação de conceito não é um ato arbitrário. Inventa-se um conceito para depois ver o que se pode agrupar ou representar. A filosofia não deve criar conceitos para seu deleite estético, pois isso implicaria em transformar toda a filosofia em um estetismo inconseqüente. Admitir uma estética da filosofia não significa tornar a filosofia uma atividade exclusivamente literária.
         Entre Adorno e Deleuze podemos afirmar encontrar alguma identidade ou afinidade quanto ao caráter estético da filosofia, apesar de em Deleuze estar muito mais acentuada a literariedade da filosofia, em sentido esteticista, algo que não encontramos em Adorno. Este enfatiza o momento científico (filosoficamente conceitual) ou de rigor associado ao momento expressivo ou “artístico” (filosoficamente não conceitual), completado por ele com o olhar sobre o mundo como se tudo fosse visto sempre pela primeira vez, tal como as crianças são capazes de fazer natural e espontaneamente, e os filósofos são capazes pelo esforço intuitivo. Na criança o assombro é espontâneo porque natural, no filósofo torna-se natural pelo esforço e trabalho do conhecimento, no rastro da vocação inata. A identidade parcial encontra-se no aspecto do chamado momento mimético ou atividade expressiva em Adorno que indica a afinidade da filosofia com a arte, originado da concepção original de filosofia como amor à sabedoria. Nesse sentido, afirma Adorno: “Segundo Platão, perdemos a visão imediata dos protótipos divinos e suspiramos por eles até consegui-los de novo. Por isso os recordamos palidamente devido à nossa preexistência. O caminho pelo qual a consciência se eleva a estas Idéias, o caminho da filosofia portanto, e a hierarquia do ser, desde o mundo aparente em que estamos desterrados até aquele mundo  do absoluto, são uma e mesma coisa. Nesta idéia da identidade do movimento subjetivo do espírito e da gradação objetiva dos conteúdos do ser radica efetivamente em Platão o motivo que, podemos dizer , proporciona o tema fundamental da filosofia. Se se parte do fato de que a consciência se dividiu no mimético ou atividade expressiva por uma parte, tal assim como a concebe em geral a teoria oficial da arte, e no filosoficamente conceitual por outra parte, poderia dizer-se então que a filosofia (e isso se vincula com esse momento do eros ou do entusiasmo), é propriamente o propósito de salvar ou recobrar com os meios do conceito aquele momento mimético, que na verdade está profundamente conexionado com o amor. Talvez o filósofo não busque a verdade enquanto algo objetivo no sentido corrente, mas sim busca muito mais expressar sua própria experiência  com os meios do conceito. Talvez procure criar uma objetivação na linguagem do conceito mediante a expressão. E assim se destacaria com grande rigor o conceito filosófico de verdade”. [3] O momento expressivo da filosofia é o lado artístico ou da expressão da pessoalidade, pois o que caracteriza a arte é a marca pessoal, assim como a filosofia nisso análoga à arte, contrariamente pois à ciência natural onde o espírito do sujeito dissolve-se na impessoalidade; apesar, como diria Husserl, que toda ação intelectual nasce no espírito, ainda que nem toda nele termine.
         Para que a filosofia não seja uma atividade que pratique o fetichismo do conceito, a criação filosófica antes impõe limites e rigor do que os elimina. Em minha experiência pessoal, a atividade como artista sempre foi acompanhada da atividade como filósofo, e dela extraí algo enriquecedor que se manteve eqüidistante. Entretanto, a liberdade inerente à obra de arte influiu e influi diretamente na filosofia. Liberdade expressa na intuição filosófica e na criação de conceitos. A pessoalidade inerente à arte alimentou o momento mimético ou de expressão no sentido adorniano. A ousadia praticada na arte migrou para a filosofia, pois o conceito exige ousadia na criação, a autonomia do espírito manifesta na arte é também exigida na filosofia enquanto criação de conceitos. Se filosofia é linguagem, a linguagem filosófica é trabalhada esteticamente, nela inclusos os conceitos. Veremos que em Deleuze há um gosto do conceito e no conceito filosófico. Há uma estética do conceito como estética da filosofia: o gosto filosófico.
         Assim, pois, a experiência artística nos remete à experiência filosófica, e esta aprende com aquela a capacidade de avançar na arte da criação rumo ao desconhecido. A arte tem uma relação especial e profunda com o desconhecido, e essa experiência filoneísta é parte do amor contido na palavra mesma, amor à sabedoria, já agora como saber propriamente dito.  Se, como afirma Deleuze, « toda ciração é singular, e o conceito como criação propriamente filosófica é sempre uma singularidade», o conceito de obra de arte migra para o conceito de obra de conceito, o conceito filosófico como obra. A pessoalidade da criação permanece na filosofia através do conceito, pois os filósofos são os conceitos que assinam, cada filósofo é uma singularidade filosófica, como na arte, algo impensável na ciência, não na ciência humana, que transita como um híbrido. “Que valeria um filósofo do qual se poderia dizer : ele não criou conceito, ele não criou seus conceitos ? », pergunta-se criticamente Deleuze. De fato, filósofos são os conceitos que criam ... filosoficamente. « E inicialmente, os conceitos são e permanecem assinados, substância de Aristóteles, cogito de Descartes, mônada de Leibniz, condição de Kant, potência de Schelling, duração de Bergson. Mas alguns reivindicam uma palavra extraordinária, por  vezes bárbara ou choquante,  que deve designá-los, ao passo que outros se contentam com uma palavra de uso corrente e muito comum que se infla de harmônicas tão longínquas que elas riscam de serem imperceptíveis a uma orelha não filosófica. » [4] Obras de arte e obras de conceito são assinadas pois o que prevalece é a singularidade da pessoalidade criadora, a marca da expressão, mas não somente nos conceitos, mas no desenvolvimento do pensamento mesmo, pois o próprio pensamento através de conceitos é expressão. Na verdade, o registro mais evidente é o da expressão, como se o momento científico ou de rigor a ela estivesse subordinado, ou este permanecesse na sombra causada pelo outro.
         O kitsch artístico como contrafação da arte ensina a filosofia a combater o kitsch filosófico, o mau gosto filosófico, já que a atividade filosófica é também uma questão de gosto, que a exemplo do artístico é adquirido pela via do conhecimento. Afirma Deleuze que « o batismo do conceito solicita um gosto propriamente filosófico que procede com violência ou com insinuação, e que constitui na língua uma língua da filosofia, não somente um vocabulário, mas uma sintaxe atingindo o sublime ou a uma grande beleza. » [5] A linguagem filosófica como expressão exige um bom gosto no interior do estilo filosófico. Filosofia é linguagem, e esta deve ser exercida na plenitude manifestando a excelência do pensamento através da excelência da linguagem. Essa a recomendação também de Kant, na Lógica. O conceito filosófico nasce no interior do exercício da linguagem. Esse nascimento dá-se por intuição, produto do assombro acumulado pelo conhecimento, mas, conforme adverte Adorno, “a filosofia não consiste simplesmente na correspondência entre o pensamento e a linguagem por um lado, e o objeto por outro, porém que tem e compreende seu objeto propriamente só transcendendo-o, sendo mais que o simples objeto.” [6] Em Adorno, a profundidade não é um fetiche, já que “a profundidade radica na relação da filosofia com seu objeto, na profundidade com que o pensamento se deixe mover pelo objeto. A profundidade mesma não é um objeto coisal que se tenha que alcançar.” [7] A profundidade dá-se na linguagem, e não como algo exterior a ela, em uma exogenia que ninguém sabe indicar exatamente a localização verdadeira, como se preexistisse e estivesse dada,  somente à espera de alguém que a descobrisse. A profundidade não é uma descoberta, é um alcance. Deleuze defende a identidade do conhecimento por conceitos e por criação ou construção de conceitos: « Pode-se considerar como decisiva, ao contrário, esta definição da filosofia: conhecimento por puros conceitos. Mas não há porque opor o conhecimento por conceitos, e por construção de conceitos na experiência possível ou a intuição. Pois, seguindo o veredito nietzschiano, vocês não conhecerão nada por conceitos se inicialmente vocês não os criaram, isto é, construídos em uma intuição que lhe é própria: um campo, um plano, um solo, que não se confunde com eles, mas que abriga seus germes e os personagens que os cultivam. » [8] O plano de imanência (plan d’immanence) é a base sobre a qual os conceitos podem ser criados. Ele é produto de uma construção que permite a criação como construção de conceitos. A estética da linguagem filosófica é a estética do conceito. O belo conceito é alcançado pelo exercício do gosto crítico de vertente puramente filosófica. A intuição artística ou insight faz com que o artista percorra o processo criador sem domínio pleno consciente da atividade, navegando rumo ao desconhecido, e essa experiência radical pessoal da expressão fez ver à filosofia que há uma coragem intrínseca na sua atividade, diferenciada das demais, pois como diria Luigi Pareyson, a obra de arte se faz por si e inventa o modo de fazer, de ser formada, inventa o modo como se deve fazer, e a filosofia toma emprestado da arte essa sabedoria inerente à arte que a conduz ao desconhecido filosófico. Adorno vai singularizar a filosofia como sendo e não sendo uma atividade especializada, e que antes de tudo, antes de sermos capazes de criar conceitos, “temos de nos comportar filosoficamente, pois a filosofia não é tanto uma temática quanto um modo de comportamento do espírito, um modo de comportamento da consciência.” [9] Entretanto, em Adorno há menos uma estética do conceito no sentido deleuziano que “uma exigência especial na precisão dos conceitos e também na precisão da expressão linguística dos conceitos.” Tanto mais expressão quanto mais precisão. Desse modo, o filósofo é tanto o artista quanto o cientista do conceito.
         Se a contradição é inerente à filosofia, como quer Adorno, a autoposição do conceito enquanto colocação por si mesmo nela próprio, coabita com a livre atividade criadora do conceito, como uma unidade dialética. A crítica de Deleuze segundo a qual « os filósofos não se ocuparam suficientemente da natureza do conceito como realidade filosófica. Eles preferiram considerá-lo como um conhecimento ou uma representação dadas que se explicavam por faculdades capazes de formá-lo (abstração ou genralização) ou dele fazer uso (juízo) » [10] , pode revelar uma tentativa de considerar o conceito filosófico como tendo não somente uma autoposição mas uma autofinalidade. A livre atividade criadora de conceitos não deve contrariar a vocação para o conhecimento, pois aí sim haveria uma nefasta identidade com a arte, gerando uma análoga correspondência do conceito pelo conceito. Afinal, não se cria conceitos meramente pelo prazer de criá-los mas sobretudo para que exerçam uma função de conhecimento das coisas do mundo, e habilitá-lo para melhorar este mesmo mundo, e não outro.
         No plano de imanência chegamos mais próximo de uma suspeita: a de que a ênfase na criação correria em favor da filosofia como arte, dada a facilidade com que Deleuze sempre encontra uma metáfora onde tudo está definitivamente pronto para demonstrar que as imagens por ele expostas traduzem a verdade da filosofia. Suas metáforas são tomadas ora das artes plásticas ora da literatura. São metáforas fenomenológicas. E é justamente aí que reside o problema de uma aceitação plena da sua filosofia do conceito, ou antes, da sua estética do conceito. O mesmo defeito de fabricação das peças fenomenológicas iremos constatar na parte final do livro dedicada à arte, onde o efeito descritivo das obras de arte como percepto (percept) e afeto (affect) atestam a fragilidade da estética de Deleuze, chegando mesmo a afirmar ser a arte uma fusão de sensações. Contudo, não é nosso propósito elaborar uma crítica da estética de Deleuze, mas sim uma crítica da estética da filosofia ou do conceito em Deleuze. No setor de peças filosóficas de Deleuze há sempre uma no balcão ou no depósito que se encaixa perfeitamente na mecânica das suas metáforas, como em um acordo prévio de ajuste dos mecanismos. Senão vejamos, a partir da definição do plano de imanência dos conceitos, o planômeno (planomène), que não se confunde com os conceitos, mas sem o qual os conceitos ficam sem chão para se manifestar, como Deleuze desenvolve toda uma plasticidade metafórica da filosofia que muito mais exige adesão incondicional que convencimento argumentativo de tipo conceitual: « Os conceitos são o arquipélago ou a ossatura, uma coluna vertebral antes que um crânio, enquanto que o plano é a respiração que banha esses ilhados (isolats). Os conceitos são superfícies ou volumes absolutos, disformes e fragmentários, ao passo que o plano é absoluto ilimitado, informe, nem superfície nem volume, mas sempre fractal. Os conceitos são agenciamentos concretos como configurações de uma máquina, mas o plano é a máquina abstrata da qual os agenciamentos são as peças. Os conceitos são eventos, mas o plano é o horizonte dos eventos, o reservatório ou a reserva dos eventos puramente conceituais: não o horizonte relativo que funciona como um limite, muda com um observador e engloba estados de coisas observáveis, mas o horizonte absoluto, independente de todo observador, e que torna o evento como conceito independente de um estado de coisas visível onde ele efetuar-se-ia. » [11] Após essa pequena viagem com um guia turístico pelo plano de imanência, nos damos conta que há um plano absoluto, uma espécie de parque da filosofia, à espera dos ocupantes, isto, dos conceitos, sem que haja qualquer conexão necessária entre plano e conceitos ¾ o horizonte absoluto, independente de todo observador¾ . A metáfora fenomenológica confirma o caráter idealista da filosofia do conceito em Deleuze.
         A intuição filosófica tem morada no plano de imanência, mais exatamente nos traços diagramáticos (traits diagrammatiques), que são elementos constitutivos do plano. Esses traços sustentam os conceitos, que na terminologia deleuziana seriam traços intensivos (traits intensifs). Os primeiros tendem ao infinito, os segundos à finitude fragmentária, embora segundo ele, « jamais os traços intensivos são a consequência dos traços diagramáticos, nem as ordenadas intensivas se deduzem dos movimentos ou direções. A correspondência entre os dois excede mesmo as simples ressonâncias e faz intervir instâncias adjuntas à criação dos conceitos, a saber, os personagens conceituais.» [12] Desta feita, confirmamos que a teoria de Deleuze procura instalar-se como concepção do mundo, pois o que verificamos é que muito mais do que nas coisas, é na imaginação personalista de Deleuze que teremos que buscar uma justificação. Há um certo esoterismo filosófico deleuziano, que necessita da persuasão personalista visando a adesão completa às suas metáforas.
         Há uma coerência entre plano de imanência e conceitos, pois aquele antecede e pressupõe a criação de conceitos, concordando que o plano seja pré-filosófico, uma camada ainda não filosófica: « De qualquer modo, a filosofia coloca como pré-filosófico, ou mesmo como não filosófico, a potência de um Um-Todo como deserto movente que os conceitos vêm povoar. Pré-filosófico não significa nada que preexista, mas alguma coisa que não está fora da filosofia, ainda que esta o suponha. Isso são suas condições internas. O não-filosófico talvez esteja mais no coração da filosofia que a própria filosofia, e significa que a filosofia não pode contentar-se de ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual, mas dirige-se também aos não filósofos em sua essência. » [13] É certo que devemos fazer a passagem da não-filosofia para a filosofia, pois esta deve ter uma fonte no seu outro que não ela, para que ela possa enfim nascer. Mas isso se dá não por ser a não-filosofia absolutamente não filosófica, porém ao contrário, é justamente porque há algo de filosófico na não-filosofia que o nosso esforço se justifica. É a ainda não-filosofia. A nossoa função é fazer essa passagem da não-filosofia no que tem de filosófico e transformá-la no inteiramente filosófico. Há partes filosóficas no não filosófico. O senso comum das culturas traz sempre algo de filosófico, como que à espera dos pensadores, pois a cultura popular tem algo de filosófico na sua não-filosofia. A humanidade pensa mesmo quando não pensa. A sensibilidade do filósofo para captar o assombro incluso no pensamento popular é que fará a diferença. Entretanto, por outro lado, em  Deleuze há uma identidade metafórica entre plano de imanência e deserto, este não existe fora da filosofia. O deserto é pré-filosófico ou não-filosófico, mas sustenta a criação de conceitos. Apesar de ser um deserto está mais no coração da filosofia que a própria filosofia. Não se sabe bem como de um deserto se pode extrair toda a riqueza da filosofia, ainda mais pelo fato do deserto não existir fora da filosofia. O oásis já não é mais objeto da miragem, mas sim o próprio deserto.
         Entretanto, a base ainda não-filosófica à espera da filosofia através conceitos, mesmo que por caminhos diversos, encontraremos tanto em Deleuze quanto em Adorno. Afirma Adorno: “Poder-se-ia nesse sentido dizer que a filosofia se esforça permanentemente na tarefa de Münchhausen, que como vocês se lembram tentava sair do pântano puxando seu próprio cabelo. A filosofia consiste no esforço do conceito por curar as feridas que necessariamente inflige o próprio conceito. O que Wittgenstein explica que só se pode dizer o que se pode dizer com clareza e que sobre o resto deve-se calar, soa de modo heróico, e tem possivelmente um tom místico-existencial que apela com êxito aos homens do gosto atual. Porém, eu creio que essa famosa afirmação de Wittgenstein é uma simples vulgaridade porque passa por cima justamente do que interessa à filosofia: o paradoxo da tarefa árdua e difícil de dizer por meio do conceito o que não se pode dizer precisamente por meio de conceitos, dizer o indizível.” [14] A resistência das coisas ao conceito ¾ na linguagem deleuziana seria a resistência do deserto da não-filosofia ¾  não pode esmorecer o filósofo, que sabe ser o conceito uma aproximação conceitual das coisas mas que também as ultrapassa. A diferença é que em Adorno o conceito não é puramente artístico, como Deleuze afirma  acompanhando Nietzsche que “pensamento é criação, não vontade de verdade”. De minha parte, acredito que pensamento é vontade de verdade e criação. Criamos conceitos para alcançarmos a verdade. Dito de outro modo, a melhor maneira de descobrirmos a verdade é criando conceitos. A criatividade da expressão filosófica é amiga da verdade filosófica e a pressupõe.
         Esse o divisor de águas entre Deleuze e Adorno quanto ao caráter de criação do conceito, ou do conceito como obra de criação. O abandono da verdade na criação de conceitos, esta substituindo-se àquela, torna a filosofia sem objeto exógeno, mas uma egolatria típica das filosofias como concepção do mundo. Mesmo que Deleuze afirme ser a arte uma atividade autônoma frente à filosofia, esta recai naquela disputando o espaço da criação. A arte exerce uma forte influência na filosofia como o não-conceitual ou expressão, porém logo a seguir permite que o conceitual dê a forma final do conceito, objetivando a verdade. Frente à influência da arte na filosofia, dirá Adorno: “Também se pode explicar isso dizendo que a filosofia como expressão, no sentido antes apontado, representa no pensamento o que não é conceito, o que não dispõe nem classifica. Nisso tem a filosofia, e é um momento que a diferencia constitutivamente da ciência, algo como uma certa afinidade com a arte, que um dos maiores filósofos especulativos, Schelling, converteu no órgão da filosofia. Inclusive em um pensador como Hegel, (...), põe em relevo, ainda que a ‘contre-coeur’, esta afinidade interna da filosofia e a arte. (...) Frente à arte, a filosofia representa o não-conceitual sempre e só por meio do conceito, ou bem representa o que não se pode pensar mediante o pensamento. A filosofia tem a sua vida na elaboração extenuante deste paradoxo, a intenção de distinguir o que parece uma contradição insolúvel até fazê-la possível.” [15] Em Deleuze, a filosofia é paradoxo não pela via dialética, mas pela via estética idealizada instituída pelo plano de imanência, os conceitos e os personagens conceituais: « É que cada uma das atividades filosóficas só encontra critério nas duas outras, isso é porque a filosofia se desenvolve no paradoxo. A filosofia não consiste em saber, e não é a verdade que inspira a filosofia, mas decidem o êxito ou o fracasso categorias como as do Interessante, de Extraordinário ou de Importante. » [16] Renúncia ao saber, que é básico na filosofia, e renúncia à verdade, que é o fim último da filosofia. A filosofia transforma-se ou regride a uma atividade lúdica sofisticada para satisfazer o ego do filósofo, uma egolatria ainda que negada. Será uma contestação surda ao livro de Adorno, sem citá-lo?
         Essa confrontação com Adorno não visa criticar Deleuze pela via adorniana, pois isso revelaria insuficiência científica na crítica a Deleuze, mas busca demonstrar algumas inconsistências na teoria deleuziana a partir dos mesmos pressupostos dela que, à luz de temáticas similares em Adorno, tornar-se-ão mais nítidas quando confrontadas com Adorno. Senão vejamos em Adorno: “Se na arte,  a verdade, o objetivo e o absoluto se fazem inteiramente expressão, assim também pelo contrário, na filosofia a expressão se faz verdade, ou ao menos tende a ela. Nisto consiste o que na filosofia mesma, se não se quer estancar neste paradoxo, está inscrito o dizer o que propriamente não se pode dizer, o momento da contradição no movimento, progresso e desenvolvimento. E esta contradição radica em seu impulso de querer alcançar com o conceito o que não é conceitual, com a linguagem o não dizível mediante a linguagem. (...) Agora verão que a dialética tal como se nos apresenta não é um ponto de vista filosófico entre outros, mas sim que o problema dialético está contido propriamente no problema da filosofia, se é que a filosofia, tal como tentei apresentá-la, é o terceiro ou o outro frente à ciência e frente à arte. Eu a delimitei frente à arte , e pus em relevo o meio conceitual e portanto a possibilidade do passo da filosofia à verdade. Pelo contrário, apesar de que a arte é também uma manifestação da verdade, não é nunca a verdade intencionalmente, enquanto que a filosofia é o âmbito da expressão cuja intenção própria é justamente a verdade. Portanto, se quisermos descer a definições, deveríamos definir a filosofia como o movimento do espírito cuja intenção própria é a verdade, porém sem imaginar-se que possa possuí-la como algo disponível em enunciados isolados ou em qualquer configuração imediata.” [17]
         Todo esse esforço teórico de Adorno é para evitar aquilo que lhe parece o mais perigoso, “o mal entendido da filosofia como concepção do mundo”. E essa me parece uma tendência de Deleuze ao idealizar a criação de conceitos, enfatizando a criação pela criação, sem compromisso com a verdade. Deleuze enfatizaria um dos momentos da filosofia, o que Adorno chama de momento mimético ou de expressão, o que conduzirá o pensamento para uma concepção do mundo, como ele mesmo criticara em Nietzsche, Schopenhauer e Spinoza, cujas filosofias seguem adeptos, persuadidos pelos gurus, líderes de uma legião sem compromisso com a verdade, ou mesmo no desprezo senão ódio à verdade.  Assim, Adorno enfatizando o caráter contraditório e dialético como da essência mesma da filosofia, explica: “Entre o momento científico e o momento mimético ou experiencial da filosofia domina uma tensão. A filosofia se falseia justamente no momento em que abandona essa tensão e se refugia definitivamente em um ou outro dos chamados princípios. Quando a filosofia, isolada, sem experimentar contato com a ciência, simplesmente cai em tal momento expressivo, que por outra parte já ordinariamente desde o princípio é falseado e coisificado, degenera em seu oposto.  A concepção do mundo opõe-se à filosofia tanto quanto o pensamento coisificado. (...) Talvez só se possa conseguir que ambos os momentos medeiem-se entre si, e sejam captados em sua dependência mútua. Porém, precisamente o pensamento que crê poder apoderar-se desse todo, cindido e dividido no trabalho científico, de modo imediato e como por encantamento, quer dizer, meramente por um ato subjetivo, justamente essa relação ao todo, se entende-se isolada e imediata, recai totalmente no privado. Isso é o que são esses projetos ocasionais e arbitrários  das concepções filosóficas do mundo, que apresentam  homens isolados, extasiando-se nelas, e que quanto mais pomposos e pretensiosos resultam tanto menos tem que ver com a verdade.” [18]
         Em Deleuze não há o momento científico do conceito, pois ele entende que a ciência é somente um objeto exógeno à filosofia, e portanto não estabelece nenhuma relação dialética imprimindo o caráter de rigor. Desse modo, Deleuze conclui: « Se a filosofia tem fundamentalmente necessidade da ciência que lhe é contemporânea é porque a ciência cruza sem cessar a possiblidade de conceitos, e que os conceitos comportam necessariamente alusões à ciência que não são exemplos, nem aplicações nem tampouco reflexões.» [19] A relação do conceito com a ciência é extramural, como alusão. Como enfatiza o que Adorno intitula momento de expressão, a criação do conceito tende à unilateralidade, já que em Deleuze o equilíbrio dá-se entre o plano de imanência e o conceito.
         Transitando na ambigüidade não dialética de evidenciar a autonomia da arte com relação à filosofia, e desta com relação à primeira, Deleuze sustenta a partir dos personagens conceituais (personnages conceptuels) como um absoluto da filosofia, o alter-ego do filósofo, o outro de si que fala por ele: « O personagem conceitual não é o representante do filósofo, é mesmo o inverso : o filósofo é somente o envelope de seu principal personagem conceitual e de todos os outros, que são os intercessores, os verdadeiros sujeitos de sua filosofia. Os personagens conceituais são os "heterônimos" do filósofo, e o nome do filósofo o simples pseudônimos dos seus personagens. Eu não sou mais eu, mas uma atitude do pensamento a se ver e se desenvolver através de um plano que me atravessa em vários lugares. (…) O filósofo é a idiossincrasia de seus personagens conceituais.» [20] O filósofo serve à causa do personagem conceitual ¾parece obrigatória a presença do personagem conceitual para dar legitimidade e credibilidade ao filósofo¾ , o que de resto, e Deleuze o sabe mais do que ninguém, não se confirma em toda a história da filosofia. O personagem é mais importante do que ele próprio diz. Mais uma metáfora literária que antes contribui que elimina a confusão filosófica.
         O conceito de gosto filosófico em Deleuze é “esta faculdade filosófica de co-adaptação, e que regula a criação dos conceitos”. A co-adaptação dos três elementos, plano de imanência-personagens-conceitos, “traçar, inventar, criar, é a trindade filosófica. Traços diagramáticos, personalísticos e intensivos”. É capaz de gosto filosófico aquele hábil indivíduo que organiza os elementos com “bom gosto”, em uma passagem imediata de um para o outro elemento seguinte, formando um mecanismo mental que une razão, imaginação e entendimento: «Se chamamos Razão o traçado do plano, Imaginação a invenção dos personagens, Entendimento a criação dos conceitos, o gosto aparece como a tripla faculdade do conceito ainda indeterminado, do personagem ainda nos limbos, do plano ainda transparente. É por isso que é preciso criar, inventar, traçar, mas o gosto é como a regra de correspondência das três instâncias que diferem em natureza.(…) Contudo, o que aparece em todo caso como o gosto filosófico, é o amor do conceito bem feito, chamando "bem feito" não uma moderação do conceito, mas uma espécie de retomada, de modulação onde a atividade conceitual não tem limite nela própria, mas somente nas duas outras atividades sem limites.(…) A criação dos conceitos só tem outro limite no plano que eles vêm povoar, mas o próprio plano é ilimitado, e seu traçado só se conforma aos conceitos para criar que ele deve  reconciliar ou aos personagens a inventar que ele deve entreter. É como em pintura : mesmo para os monstros e os anões há um gosto a partir do qual eles devem ser bem feitos.(…) » [21] A relação entre pintar monstros e anões bem feitos e o caráter ilimitado do plano de imanência resta por ser esclarecida. O bom gosto de um conceito “bem feito” independe da qualidade do objeto. De fato, não se sabe exatamente quais os limites de cada um dos elementos, que segundo Deleuze são simultâneos, pois se a criação de conceitos não tem limite, o plano de imanência e os personagens conceituais também não ¾ por diversas vezes Deleuze defende o caráter infinito das atividades, o que para nós é mais uma manifestação idealista e um enorme exagero rigorosamente contrariado pela história da filosofia e pela própria filosofia dele mesmo ¾ , tudo resulta em um absurdo da medida. A filosofia é uma atividade finita como qualquer outra. Como a ciência e como a arte. Como o esporte. Ele utiliza os termos gosto e bem feito negando que queiram dizer o querem dizer, e logo a seguir que querem dizer exatamente o querem dizer: os conceitos filosóficos precisam ser bem feitos e ter bom gosto filosófico, como na pintura, na qual até mesmo monstros e anões precisam ser “bem feitos”, apesar de horríveis. Pode-se fazer uma bela foto do livro ou da miséria humana. Simone de Beauvoir certa vez mencionou em um de seus livros este aspecto ambíguo da arte.
         Na verdade, Deleuze utiliza o conceito de gosto filosófico ou gosto do conceito no sentido croceano de intuição ou insight da obra de arte: « Dá-se o mesmo com o gosto dos conceitos : o filósofo só se aproxima do conceito indeterminado com receio e respeito, ele hesita longamente em lançar-se, mas ele só pode determinar o conceito  criando-o sem comedimento, tendo somente por regra um plano de imanência que ele traça, e por único compasso os estranhos personagens que ele faz viver. O gosto filosófico não substitui a criação nem a modera, é ao contrário, a criação dos conceitos que faz apelo a um gosto que a modula. A livre criação de conceitos determinados tem necessidade de um gosto do conceito indeterminado.(…) Nietzsche  pressentiu essa relação da criação dos conceitos com um gosto propriamente filosófico, e se o filósofo é aquele que cria os conceitos é graças a uma faculdade de gosto como um « sapere » instintivo quase animal  ¾ un Fiat ou um Fatum que dá a cada filósofo o direito de aceder a certos problemas como uma impressão marcada sobre seu nome, como uma afinidade da qual suas obras originar-se-ão. » [22] Talvez esse seja o ponto alto da descrição fenomenológica deleuziana. A indeterminação do conceito fica à espera do “saber instintivo”, em uma zona do inconsciente filosófico individual mediatizado com o inconsciente filosófico coletivo, cultural ou histórico, e através da faculdade do gosto o exercício da livre criação de conceitos, leia-se também imaginação criadora filosófica, resultará na determinação do conceito, daí Deleuze afirmar com toda razão que “a livre criação de conceitos determinados tem necessidade de um gosto do conceito indeterminado.” Esse caminho é análogo ao da criação de obras de arte, pelo menos no que diz respeito ao ponto de partida. A força do conceito indeterminado é que leva o filósofo à sua determinação conceitual. A indeterminação é pré-conceitual, mas racional, ao contrário da arte. Quanto ao ponto de chegada, a arte permanece uma finalidade sem fim determinado, como diria Victor Basch completando Kant, ao passo que o conceito filosófico seria uma finalidade com fim determinado, mesmo que a finalidade surja na indeterminação do conceito, no conceito indeterminado deleuziano.
         Todas as atividades humanas necessitam da experiência e da experimentação, do exercício do conhecido à criação do desconhecido, e todas adaptam às suas respectivas exigências internas. Entretanto, vejamos como Deleuze encara a criação na arte, na ciência e na filosofia: « Seguramente há tanta experimentação como experiência de pensamento em filosofia  quanto na ciência, e nos dois casos a experiência pode ser surpreendente, sendo próxima do caos. Mas também há tanta criação em ciência quanto na filosofia ou nas artes. Nenhuma criação existe sem experiência. (…) As coordenadas, as funções e equações, as leis, os fenômenos ou efeitos permanecem ligados a nomes próprios, como uma doença fica designada pelo nome do médico que soube isolá-la, agrupar ou reagrupar os signos variáveis.» [23] Ora, a experimentação exige criatividade nos limites impostos pela ciência, mas não criação propriamente dita, pois senão perder-se-ia o objeto mesmo da pesquisa. O nome próprio do cientista que acompanha o nome da doença ou da sua cura ¾  a gota contra a poliomielite, a famosa vacina Sabin  ¾ , é uma justa homenagem, mas não é uma assinatura pessoal como criação. Mesmo uma vacina prescinde do nome do autor, pois ela é a mesma em qualquer parte do mundo, rigorosamente impessoal, ao passo que a filosofia de Platão tem a sua pessoalidade indelevelmente fixada no texto mesmo como expressão individual. Ninguém toma o próprio Sabin na gota, mas sim a vacina que tem um nome arbitrário. O nome próprio em uma teoria científica tem valor honorífico mas nunca como uma marca pessoal, como na pintura de Picasso, na música de Beethoven ou na literatura de Machado de Assis. Toda nomeação em ciência é rigorosamente arbitrária e toda descoberta da ciência é impessoal, ainda que praticada por pessoas humanas.
         Para que terminemos nos limites impostos pela intenção, vemos que Deleuze tomando uma expressão oriunda de Pascal (com antecedentes na escolástica cristã medieval) e cara ao pensamento estético do século XVIII, a teoria do je ne sais quoi da obra de arte, por paráfrase afirma ele que “a filosofia e a ciência comportam dois lados (como a própria arte com seu terceiro lado) um je ne sais pas tornado positivo e criador, condição da criação mesma, e que consiste em determinar por aquilo que não se sabe. » [24] O devir do saber ou do não-saber não é criação de ciência em sentido estrito, mas desenvolvimento ou progresso da ciência, pois o saber não é uma invenção, e essa pode ser uma aplicação da ciência para inundar o mundo com objetos não artísticos, mas objetos científicos. O caráter não-coisal da obra de arte rejeita essa falsa aproximação.

                                                
* João Ricardo Moderno
Presidente da Academia Brasileira de Filosofia
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro                                                                                                                                                                                                               


[1] Por razões de comodidade referir-me-ei sempre ao pensamento deleuziano por também entender que o pensamento de Guatarri insere-se como parte organicamente integrada no primeiro, ficando, pois, subtendida a participação do segundo.

[2] Deleuze et Guattari, Qu’est-ce que la philosophie, Ed. Minuit, Paris, 1991, p.81.
[3] Adorno, Theodor W., Terminología Filosófica I, Ed. Taurus, Madrid, 1983,
[1] Op. Cit.,p. 13. [1] Op. Cit.,p. 13.[1] Op. Cit.,P. 52.[1] Op. Cit.,p. 107.
[1] Op. Cit., p.39.[1] Op. Cit., p.43.[1] Op. Cit., p.43.[1] Op. Cit., p.43.
[1] Op. Cit., p.67.[1] Op. Cit., p.80.
[1] Op. Cit., p.67.[1] Op. Cit., p.70.[1] Op. Cit., p.153.
[1] Op. Cit., p.62.[1] Op. Cit., p. 75.[1] Op. Cit., p. 76.
[1] Op. Cit., p.122.[1] Op. Cit., p.122.

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