Meditar na cidade
Rogel Samuel*
O título é próximo de um texto de meu guru, Sua Santidade Sakya Trizin, chefe da linhagem sakya do budismo tibetano. Ele deve vir ao Brasil pela primeira vez no ano que vem. O título, o meu, entretanto, quer significar o seguinte: muitas pessoas pensam que só podem fazer meditação se forem monges, nos mosteiros, no alto das montanhas, no Himalaia, no meio da floresta, quando não em grutas selvagens. Isso tudo é um erro de concepção, interpretação errada do sentido da meditação ou da prática budista. Nos dias de hoje é um perigo pensar que podemos nos embrenhar na mata, longe de tudo e de todos para meditar.
Nada mais confortável, nada mais confiável e seguro do que nossas próprias casas para meditar e mesmo fazer um retiro profundo. Por mais que você tenha filhos barulhentos e agitados, ou que sua esposa ou esposo não cooperem, ou que seu emprego seja estafante e complexo, ou que sua rua seja barulhenta, você pode encontrar, se realmente quiser, uma hora, uns minutos, um tempo e um lugar em que isso pode ser feito. Quando queremos algo, quando ansiamos por algo, por uma jóia preciosa, encontramos vontade, energia e força para vencer os obstáculos.
Podemos por exemplo acordar antes de todos da casa, podemos desligar os telefones, o computador, a televisão etc e nos dedicar a observar a nossa respiração, na região da barriga, e assim estaremos de coluna reta, ereta, sem encostar na cadeira, os ombros para trás, a cabeça erguida, um sorriso nos lábios, como o sorriso de um Buda, os olhos semi-cerrados, em paz, sem esforço, deixando tudo fluir naturalmente, facilmente, espontaneamente, durante quinze minutos, ou menos, sem apegar-nos a nada, deixando os pensamentos prosseguirem no seu rumo incerto, na sua torrente confusa, aquela barulheira interior, aquela agitação interior, deixando para traz tudo isso por um momento de atenção, abandonando toda a nossa ansiedade, todo o nosso sofrimento, e assim fazemos de contas que nada disso tem a ver conosco, que tudo aquilo que fomos morreu, que nosso corpo é vazio, que nosso corpo é um corpo de arco-íris, um corpo de luz clara, feito de luar, feito de perfume, feito o corpo de Buda, feito de compaixão, feito amor, feito luz.
Aí você estará meditando.
E será feliz.
Porque meditação é felicidade.
Se não produzir alegria e felicidade, há algo errado na sua meditação.
Depois dessa meditação diária, você poderá tomar seu café, levar as crianças na escola, ir para o trabalho, para o telefone, etc.
Alguns dias, parece que você nem consegue meditar. Outros dias você experimenta a excelência.
Pois saiba: no budismo boa ou má meditação não existem.
Talvez quando você “vir” que está confuso, quando “vir” a sua distração, aí é que a verdadeira meditação está. No ver a confusão. Porque não a vemos. Nós não a vemos, nós somos a confusão. Quando a vemos, já não somos.
Mas cuidado, há um veneno perigoso: quem medita pode aumentar o egoísmo, a máscara do “eu”, a vaidade, a loucura. Acontece muito frequentemente isso.
Para curar e proteger-se disso, você não deve considerar-se meditando, não tome o meditador como uma entidade, mas imagine que naqueles minutos você é outra coisa. Por isso é bom meditar de olhos abertos, semi-cerrados, diante de um objeto, ou da parede, para não delirar.
Se você vir Buda ou Jesus saiba que isso é loucura, uma ilusão. Se você vir um demônio ria dele e saiba que é criação de sua mente. Observe: “isto é um pensamento”. Se ouvir vozes, observe: “isto é um mero som”. Se sentir dores, observe: “isso é uma mera dor”, e continue a observar a respiração, inabalável, imóvel, mas sem esforço.
Meditar é um esforço sem esforço, é um jeito de fazer.
Talvez ajude a você imaginar que você seja uma lua, um luar, que você não seja nada, ou que tudo desapareceu.
Há várias formas de meditação segundo alguns mestres.
Uma delas é através da repetição de um mantra, ou de uma palavra, ou frase.
Você pode repetir: “a morte é certa e a vida é incerta”.
Ou pode ficar repetindo: “felicidade – felicidade – felicidade”.
Ou mesmo: “possam todos ser felizes”.
Quando você repete: “possam todos ser felizes” milhares de vezes por dia, durante todo o dia, o mundo inteiro passa a ser de amigos amorosos, todos se sentirão felizes com sua presença, você será bem recebido onde estiver, aprenderá a sorrir para todos, e nunca poderá facilmente ser agredido, ou assaltado.
Todos sentirão em você um amigo.
É porque sua meditação criou força e raízes.
[Rogel Samuel é doutor em letras, prof. aposentado da UFRJ e autor de “Novo manual de teoria literária” (5ª ed. Editora Vozes]http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/
Nenhum comentário:
Postar um comentário