“Quando você acha que sabe todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas…”

sexta-feira, fevereiro 4

KANT: FILOSOFIA COMO SISTEMA E O A PRIORI – PROBLEMA TEÒRICO E PRÁTICO

Raphael Gondim Machado Lima(1)

Resumo: No presente artigo apontaremos a filosofia kantiana como um sistema que tem como preocupação fundamental o a priori. Tal cadeia de pensamentos envolve tanto o aspecto da razão teórica quanto o aspecto da razão prática. Este, por sua vez, dividido em ética e direito que têm, entre si, semelhanças e diferenças.
Palavras-chave: Kant, razão teórica, razão prática, ética e direito, a priori.

Abstract: In this paper we consider the Kantian philosophy as a system whose basic concern a priori. This train of thought involves both the aspect ratio as the theoretical aspect of practical reason. This, in turn, divided into ethics and law that have, between them, similarities and differences.
Keywords: Kant, theoretical reason, practical reason, ethical and right, a priori.

Introdução
Em ampla medida pode-se afirmar que o problema geral kantiano é aquele que pergunta sobre a possibilidade do a priori. Portanto, a grande preocupação de Kant sempre foi com a razão. Nos textos pré-críticos esta preocupação já era vista. Por exemplo, nos Sonhos de um visionário explicados pela metafísica, datado de 1766, Kant já parece ter uma diretriz para alcançar a solução da possibilidade da razão. Isto é constatado quando é assinalada na conclusão dos Träume a impossibilidade para se explicar a relação entre alma e corpo.

Nessa perspectiva, vê-se que nos Träume, Kant compara o sistema leibniz-wolffiano com os resultados alcançados por Swedenborg. Este acreditava que via e falava com espírito. Ele afirmava que os espíritos moviam objetos e que lhes transmitiam mensagens sobre catástrofes e pessoas. No entanto, apesar de Swedenborg ser um acadêmico respeitado tanto por era um catedrático de Matemática na Universidade de Uppsala quanto por seu reconhecimento enquanto cientista, como, também, pela vastidão e profundidade dos seus escritos sobre ciência, mesmo assim, Kant acreditava que Swenderborg padecia de alucinações.

Nos Träume, Kant qualifica as conclusões swedenborguianas de “loucuras dos sentidos” e relaciona com as conclusões de Leibniz e Wolff, chamando-as de “loucuras da razão”. Nestes termos, Kant critica todos os neo-cartesianos e afirma, veementemente, que nunca vamos poder solucionar os problemas da relação entre alma e corpo.

Sob essa ótica, quanto à alma, Kant acredita que ela é uma substância imaterial, tal qual foi provada por Descartes, que tem características próprias as quais são diferentes daquelas presentes no corpo, que é substância material. Com isto, então, em seu escrito de 1766, Kant já começava a fazer uma distinção entre mundo inteligível e mundo sensível.

Posteriormente, na dissertação de 1770, Kant faz a diferença entre mundo fenomênico e mundo noumênico, com uma concepção propriamente sua de espaço e tempo.

Logo, o problema kantiano, desde 1766 até as suas últimas obras, foi sempre com a razão. Neste sentido, no problema kantiano, há uma unidade interna (a possibilidade do a priori). Esta origina vários outros problemas articulados entre si, dentre eles o problema teórico e o prático. Concernente ao problema prático tem-se a relação entre o direito e a ética, onde, na filosofia kantiana, tanto um quanto o outro são deduzidos a partir da liberdade. Neste sentido, para Kant:
A dedução não é definida como cadeia de silogismos, mas, tal como uma peça jurídica, sua "prova" consiste na referência a um fato legitimador. Com efeito, elucida Henrich, se hoje chamamos de "dedução" apenas uma cadeia de silogismos (nesse sentido tendemos a interpretar a dedução de Kant), no século XVIII "dedução" era o nome de um instrumento jurídico, no qual a "prova" partia de um "fato". É de acordo com este modelo jurídico que Kant elaborou as deduções transcendentais tanto na Crítica da Razão Pura como na Crítica da Razão Prática.

No entanto, embora o direito e a ética sejam deduzidos da liberdade, a diferença entre um e outro reside no fato de que na ética a coerção é interna e enquanto que no direito é externa. Assim, o presente artigo terá como objetivo apontar a articulação (identidades e diferenças) entre esses dois aspectos como frutos de uma mesma raiz: a razão prática, onde, essa, tem uma intrínseca relação com a razão teórica.
1. O Problema Teórico

Acredita-se que o problema teórico kantiano foi um instrumento eficaz para Kant tentar solucionar uma questão que há muito lhe gerava incômodos: a razão prática. Portanto, não se pode argumentar em torno do problema prático kantiano sem fazer menção sobre o seu problema teórico. Este, por sua vez, pode ser dividido em duas questões:
1ª. A metafísica é possível como ciência?
2ª. Como são possíveis a física e a matemática como ciência?

Em outras palavras, Kant objetivava perguntar como o conhecimento a priori é possível na matemática e na física e não na metafísica. A preocupação kantiana com a possibilidade do a priori é indicada até mesmo pela forma como Kant elabora as perguntas: para a matemática e a física, Kant fornece um tratamento diferente daquele da metafísica; para esta é perguntado sobre a sua possibilidade e para àquelas é afirmado serem elas conhecimento científico, portanto o que ele indaga é sobre o modo de efetuar tal conhecimento.

É conveniente lembrar que, para a filosofia kantiana, ciência é conhecimento universal e verdadeiro. Logo, ele não poderia ser a posteriori, pois este é baseado, unicamente, na experiência e esta não garante a universalidade nem a necessidade de nenhum conhecimento. Então, o conhecimento científico só pode ser a priori.

Por que o conhecimento a priori é possível na matemática e na física e não na metafísica? Saber a resposta sobre a questão é se fazer a pergunta sobre a possibilidade de juízos sintéticos a priori, ou seja, juízos que têm uma necessidade diferente daquela da lógica formal e, por conseguinte, não se baseiam no princípio de não-contradição. Nisto ocorre a constatação de Kant que há juízos universais e necessários, mas que também são juízos de ampliação. E Kant afirma: “... a experiência nos ensina que uma coisa é isto ou aquilo, mas não que tal coisa pode ser de outro modo...”

E ainda acrescenta: “... não conhecemos a priori nas coisas senão aquilo que nós mesmos nelas colocamos...”

Com isto, nós vimos que o sujeito só pode conhecer a priori algo que ele representa. O que ele conhece da natureza é o modo como a realidade lhe aparece, isto é, ele só pode conhecer os fenômenos e não os noumenos. Neste sentido, a física e a matemática vão se ater a fenômenos. A metafísica, pelo contrário, objetiva conhecer as coisas através da razão pura e, por este motivo, na sua busca incessante por razões, ela produz antinomias.

Desta forma, na parte da Crítica da Razão Pura intitulada Dialética Transcendental, Kant nos fornece o resultado da busca incessante da razão e uma destas respostas torna-se um problema importante para que Kant funde a sua ética. Aqui ocorre a ligação que há entre a Crítica da Razão Pura e a Crítica da Razão Prática.

É na parte da Dialética Transcendental que trata sobre o mundo , Kant vai abordar a questão da liberdade, mostrando as antinomias cosmológicas, ou seja, aquelas que sustentam que o problema cosmológico é o da causalidade, e afirma: ‘A causalidade, segundo, as leis da natureza, não é a única donde possam derivar-se todos os fenômenos do mundo. Para explicá-los, é necessário admitir-se, ainda, uma causa livre.”

Como, também: “Não há liberdade, mas tudo se dá, no mundo, exclusivamente segundo as leis da natureza.”

Logo, com o acima exposto, o que Kant detecta é que a metafísica consegue demonstrar, para um só tema, respostas contraditórias. A contradição sobre o determinismo e a liberdade põe Kant em dificuldades, pois se ele recusa a causalidade, não há lei para a natureza e nem a ciência. Se Kant refuta a liberdade, não há ética. Caso ele não dissolvesse tal questão, nós teríamos que abrir mão do pensamento racional incluindo o ético.

A solução de Kant para o impasse acima mencionado tem como fundamento aquilo que ele denominou de inversão copernicana, isto é, o conhecimento fundado na análise do sujeito cognoscente, onde este é parte ativa no processo, impondo as suas intuições puras de espaço e tempo e os seus conceitos.

2. O Problema Prático
Loparic afirma que, “deve ser possível à razão humana decidir, com toda segurança, se um problema teórico é solúvel ou não, podendo chegar, caso o problema seja solúvel, ao conhecimento do que é procurado”. Nessa perspectiva, tal como foi acima exposto, o problema teórico kantiano, mesmo resolvido, ou seja, mediante a junção de intuições e conceitos, da liberdade restrita pelo fato do homem conhecer, somente, fenômenos – aquilo que ele representa, alguma coisa, para a filosofia kantiana, ainda faltava. O problema teórico kantiano parece ter sido um instrumento de ajuda para a solução do problema prático. Em outras palavras, a grande preocupação de Kant continuava sendo a ética.

No Prefácio da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, publicado em 1785, já se percebe qual seria a grande preocupação de Kant. Nesse livro ele indaga sobre a suma necessidade de se elaborar, de vez, uma filosofia moral. pura completamente expurgada de tudo quanto é empírico. Assim, a constatação que Kant chegou para responder a tal questionamento foi a seguinte: “As leis morais, com seus princípios, em todo o conhecimento prático diferenciam-se de tudo o que contenha algo de empírico; e (...) toda a filosofia moral (...) quando aplicada ao homem (...) fornece-lhe leis a priori.”

Sob essa ótica, para diferenciar e explicitar a origem das leis morais de tudo o que é empírico, Kant utiliza, inicialmente, na Fundamentação, o método do tipo analítico, porquanto a primeira seção da Fundamentação trata da transição do conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico e na segunda seção, Kant mostra a: transição da filosofia moral popular para a Metafísica dos costumes. Em seguida, e em sentido inverso, ou seja, sinteticamente, na terceira seção, Kant aponta o último passo da Metafísica dos costumes para a Crítica da Razão pura prática.

Portanto, na transição do conhecimento moral da razão do senso comum para o conhecimento filosófico, por exemplo, Kant vai afirmar que todas as qualidades superiores do homem estão relacionadas com a boa vontade. No conhecimento moral da razão humana vulgar alcançamos um princípio, mesmo sem ser concebido abstratamente, esse serve como padrão dos juízos. Portanto, para corroborar com isso, é evidente como o senso comum sabe distinguir, em todos os casos que se apresentem, o que é bom e o que é mau, o que é conforme ao dever ou o que é contrário a ele. Nessa perspectiva, constata-se que é a vontade de agir por dever. Logo, para se ter o verdadeiro valor moral, é preciso que toda a ação seja executada por dever. Onde o valor moral de uma ação “depende (...) unicamente de princípio do querer...” e” o dever é a necessidade de cumprir uma ação por respeito à lei.”

Neste sentido, segundo Kant, o homem deve se portar de modo que sempre queira que a sua máxima seja transformada em lei universal.

Então, o dever, para Kant, não é um conceito empírico e sim uma ordem a priori. Porém, no homem, a vontade não é perfeita, pois o ser humano, além de ter a característica da racionalidade, encontra-se submetido às inclinações da sensibilidade. Por este motivo, as leis da razão se apresentam como imperativos categóricos. Estes podem ser definidos da seguinte forma: “... procede como se a máxima de tua ação devesse ser erigida, por tua vontade, em lei universal da natureza.”

No entanto, embora na terceira seção da Fundamentação Kant vai se preocupar em justificar a possibilidade do imperativo categórico, é na Crítica da Razão Prática que a centralidade de tal aspecto vai existir. Nessa perspectiva, na Crítica da Razão Prática, Kant objetiva mostrar que a razão pura é prática no sentido em que ela fornece a lei em que toda moralidade vai se fundamentar, na qual a lei moral é totalmente independente da experiência. Neste sentido, a vontade determina a si mesma. Isto significa que ela é só a forma da lei, ou seja, aquilo que garante a sua universalidade. Para tanto, ela precisa ser livre, logo: “a liberdade e a lei prática incondicionada implicando-se mutuamente...” .

Por este motivo, a lei moral deve ser formulada da seguinte maneira: “age de modo tal que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal...” .

Assim, para Kant, a lei moral é um fato da razão, pois a consciência do dever é comum a todos os homens. Isto nos mostra que a razão é legisladora e que ela é livre, porquanto: “a autonomia da vontade é o princípio único de todas as leis morais e dos deveres conforme a ela.” .

Na filosofia kantiana, a característica da autonomia é enfatizada, porque se o homem partisse dos conceitos de bem ou mal para determinar a lei moral, ele teria que buscá-los na experiência, esta, contudo, não garante a necessidade e nem a universalidade de tais conceitos, logo: “o conceito do bem e do mal não devem ser determinados antes da lei moral (...), mas somente depois desta lei e por ela...” .

A decorrência da explicação acima é que os conceitos do bem e do mal são a priori e daí vem o problema de como o Bem e o Mal podem ser aplicados a objetos sensíveis, portanto, Kant responde:

Só o racionalismo do juízo se mostra adequado ao uso dos conceitos morais, pois que não toma a natureza sensível senão aquilo que também a razão pura pode conceber por si mesmo, a saber, a conformidade com a lei, e não introduz na natureza supra-sensível senão aquilo que, por seu turno, possa realmente traduzir-se em ações no mundo dos sentidos, segundo a regra formal de uma lei natural em geral .

Em suma, a pergunta central do problema prático kantiano é: por que eu devo? A resposta de Kant é: eu devo, porque sou um ser racional. O dever tem a sua fundamentação na razão, onde esta dita às suas próprias leis. As suas leis vêm através de um imperativo; isto ocorre, porque o homem não é somente um ser racional, ele é também sensível. Neste sentido, o ser humano é livre, pois ele impõe para si mesmo as suas leis, onde a vontade é o seu modo de causalidade. Ela é livre quando se autodetermina, com isto, ela é autônoma.

3. O Direito e a Ética
Quanto à razão prática, o projeto kantiano é deduzir, tomando como parâmetro o imperativo categórico, a ética e o direito. Para tanto:
O pertinente princípio de justiça, o da liberdade igual, é formulado por Kant na sua Rechtslehre/ Doutrina do direito ( § B ). O seu conceito moral do direito retoma o cerne da idéia de justiça, vale dizer a rigorosa imparcialidade. Ele vincula o princípio moral geral ( “lei universal da liberdade “) à condição de aplicação do direito, isto é, ao convívio (...) E Kant considera esse direito das pessoas a “menina dos olhos de Deus sobre a Terra” ( Vorlesung über Pädagogik/ Preleção sobre pedagogia, p. 490).

No entanto, embora Kant relacionando o princípio moral geral (“lei universal da liberdade“) à condição de aplicação do direito, há uma distinção fundamental entre a ética e o direito, ou seja, o fundamento da ética é o próprio dever; em contrapartida, o direito é determinado por elementos sensíveis. Nele é somente considerada a exterioridade das ações e “... O Direito é, pois, o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de cada um pode conciliar-se com o arbítrio de outrem segundo uma lei universal da liberdade...”. Assim, o direito está inscrito entre as relações intersubjetivas e ele encontra-se presente no campo das relações práticas do homem com outros homens, onde cumpre salientar que a ligação é entre dois arbítrios. Tal reação não ocorre segundo desejos, porquanto o arbítrio é a consciência da possibilidade de alcançar um fim determinado. Então:

Para constituir-se uma relação jurídica é necessário que aconteça o encontro não somente de dois desejos ou de um arbítrio com um simples desejo, mas de duas capacidades conscientes do poder que cada um tem de alcançar o objeto do desejo..

Assim, a relação de um arbítrio com o outro considera, apenas, a forma e não a matéria na relação dos dois arbítrios. Assim, o direito não vai se preocupar com os fins individuais ou utilitários do sujeito, mas, somente, em prescrever as formas na relação dos arbítrios; a preocupação é a de como se deve fazer.

Nestes termos, o problema kantiano é o que o direito deve ser, isto é, Kant vai se preocupar com a questão da justiça, isto é, “... do critério com base no qual seja possível distinguir o que é justo do que é injusto...”. Assim, a preocupação kantiana é com o que deveria ser o direito e sua correlação com o ideal de justiça. Isto leva a considerar que mesmo que não exista nenhuma legislação que corresponda ao seu ideal de justiça, a definição kantiana do que é justo continuará verdadeira, porquanto ela só indica o ideal que o legislador deveria adequar-se.

O ideal de justiça de Kant pode ser definido como justiça e liberdade. Desta forma, o direito é, assim, entendido como limite à liberdade individual, só assim todos os membros da associação podem usufruir de uma igual liberdade sempre compatível com a do outro. O que importa é a relação mútua dos arbítrios e a universalidade da lei. Nisto ocorre a coexistências de liberdades externas e Kant afirma:
Se, portanto, a minha ação ou, em geral, o meu estado pode coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal, aquele que me coloca impedimentos comete perante a mim um acto injusto; pois que esse impedimento (essa resistência) não pode coexistir com a liberdade segundo leis universais... ).
Portanto, continua Kant:
A lei universal do Direito é: age exteriormente de tal modo que o uso livre do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal; esta é, na verdade, uma lei que me impõe uma obrigação, mas que de todo não espera, e muito menos exige, que deva eu próprio restringir a minha liberdade a essas condições em virtude dessa obrigação, mas, pelo contrário, a razão diz apenas que a liberdade, na sua idéia, encontra-se limitada a tal requisito e que ela pode, no plano dos factos, ser limitada por outros...

Neste sentido, o direito de cada um vai até onde começa o do outro, onde a universalidade da lei é dada a priori, fundada na liberdade que é autonomia e o problema que se apresenta aqui é o de conciliar liberdade com coação. Assim, a coação não invalida a liberdade, porquanto ela vai de encontro ao que é injusto. Ela é contrária a tudo que é contra a liberdade e a noção de direito é relacionada à noção de coação, pois o dever jurídico é a ação conforme o dever. A obrigação jurídica, então, deve basear-se na razão prática, onde a autonomia é a exigência de participação de todos na legislação.

Assim, segundo Kant, a passagem do estado de natureza ao estado civil é um dever para o homem; é a constituição do Estado, onde esta é uma exigência prática. Isto tudo acontece por meio de um contrato originário.

O contrato originário não é um fato histórico, mas uma idéia da razão, um princípio ideal que justifica racionalmente o Estado. Então, nele todos deixam a liberdade externa para retomá-la novamente como membro do estado, abandonando uma liberdade selvagem para conseguir uma liberdade que advém da vontade de legislar. Trata-se, então, de submissão à lei que o próprio homem se dar, ou seja, trata-se de ter liberdade com autonomia.
Em suma:
Com o imperativo categórico, com a idéia do contrato originário e com a formulação do princípio universal do direito, Kant abre a perspectiva do procedimentalismo e do formalismo universalista, podendo afirmar a prioridade do justo ( insistindo no universalismo que permite a coexistência de uma pluralidade de concepções do que seria a vida boa ) sobre o bem ( ou seja, concepções particulares do que seria a vida boa, a felicidade ). Essas idéias são retomadas e transformadas de maneiras distintas por Rawls e Habermas...

Considerações Finais
O ponto de ligação entre o problema teórico kantiano e o problema prático é a questão da fundamentação. Na questão teórica eram evidentes o crescimento da ciência no século XVII e o decréscimo da metafísica, mas o que não ficava claro era por que um conhecimento a priori como o científico alcançava verdades e o conhecimento metafísico, também a priori, não as alcançava. Logo, Kant constatou que a ciência considerava, apenas, os fenômenos e seus juízos eram sintéticos a priori e a metafísica gerava antinomias e, desta maneira, contrariava até mesmo um de seus princípios mais fundamentais: o princípio da não-contradição.

Constatada a questão de que a metafísica não poderia ser considerada como conhecimento, Kant, ainda acreditava que os seus temas eram fundamentais para o ser humano, como, por exemplo, o da liberdade.

Assim, tanto como foi feito na ciência, Kant procurou fundamentar a metafísica em algo que não fosse transcendente. A razão passa a ser tratada, então, de outra forma.

E, para tanto, Kant pergunta: como pode a razão teórica determinar o conhecimento e a razão prática determinar a vontade?

Neste sentido, a razão determina o conhecimento através de intuições puras de espaço e tempo e de categorias. Por conseguinte, isto remete a um sujeito, a um eu penso e a uma necessidade fenomênica.

No âmbito da razão prática, as noções de legalidade, vontade, autonomia e liberdades estão vinculadas. Onde a vontade é um modo de causalidade, na qual a liberdade é sua propriedade, por este motivo ela se autodetermina e é autônoma. A sua validez é para todo o ser racional.

Logo, Kant só chega à idéia fundamental da filosofia prática que é aquela causalidade por liberdade, porque discutiu a causalidade fenomênica.

Nessa perspectiva, o filósofo de Koenigsberg crê que a razão prática é autônoma, assim ele procurará um princípio justificador para algo que o senso comum já sabe, mas não conhece o porquê. Daí é que surge o título da sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes.

Tanto na Fundamentação da Metafísica dos Costumes quanto na Crítica da Razão Prática é afirmado que a tradição filosófica prática sempre utilizou imperativos hipotéticos como a felicidade, a beatitude, o prazer, o bem-estar, a perfeição ou a glória de Deus. Baseado nisto podemos inferir que a tradição não tinha uma Ética. Ela era desprovida de tal saber, pois, além de não fundamentá-lo coerentemente, restringia-se a um princípio subjetivo da vontade, decorrendo disto uma pluralidade de matérias ou fins usados em função da realidade de um fim particular, qual Kant denomina de material. Isto é relacionado como algo subjetivo, válido, somente, para uma vontade humana incapaz de fornecer a universalidade e a necessidade requeridas para uma lei moral, mostrando-se, assim, insuficiente como princípio supremo de moralidade onde o caráter universal e necessário tem que prevalecer.

Em suma, a razão prática pura descobre o seu princípio na forma pura da razão, de maneira autônoma, a partir do imperativo categórico. Só, desta maneira, pode-se fundamentar a moralidade e afirmar que o fato da razão é apoditicamente certo. Ele é visto através do senso comum, mas não é através desse fundamentado. Esses fundamentos são a priori, eles estão estabelecidos por si mesmos. Caso contrário, não haveria tais princípios para o juízo moral, pois se eles fossem a posteriori não poderiam ser universalizados.

Quanto à universalidade dos princípios da razão prática, o projeto kantiano é amplo, porquanto, dentre outras coisas, relaciona a ética com o direito. Nessa perspectiva, na Metafísica dos costumes: “Depois da crítica da razão prática devia seguir-se o sistema, a metafísica dos costumes, a qual se divide em primeiros princípios metafísicos da doutrina do direito e em primeiros princípios metafísicos da doutrina da virtude” Mas, em ampla medida, o que relaciona a ética ao direito? Kant afirma ser um tipo de liberdade que tem a própria liberdade como causa. Portanto, é na questão da liberdade que esses dois âmbitos da razão prática coincidem. Quanto ao direito, este está relacionado com a coexistência das liberdades. Portanto, para Kant, as ações dos homens podem coexistir com a liberdade de cada um segundo a lei universal do Direito que diz: age exteriormente de tal modo que o uso livre do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal; esta, embora impondo uma obrigação, não exige, que se deva restringir a liberdade de um homem a essas condições em virtude dessa obrigação, mas a razão, somente, afirma que a liberdade, na sua idéia, encontra-se limitada a tal requisito e que ela pode, no plano dos fatos, ser limitada por outros. Portanto, é nesse ponto que se constata a distinção que Kant faz entre direito e moral, porquanto a determinação moral é interna à pessoa, enquanto que a determinação do direito ocorre no âmbito externo à pessoa. No entanto, tanto o direito como a ética tem leis universais, por esse motivo só podem ser justificados a priori e sem dados heterônomos.

Portanto, tudo o que não é lei na filosofia prática kantiana pode-se, panoramicamente, relacionar com a palavra heteronomia. Com ela se entende a decorrência e a dependência da vontade às causas e interesses externos. Os princípios heterônomos podem ser empíricos ou racionais. Os primeiros baseados no sentimento físico ou moral. Os segundos baseados na perfeição relacionada à vontade do homem ou baseados em um conceito de perfeição independente advindo de Deus o qual é causa determinante da vontade do ser humano. Neste caso, quando a ação do homem é vista determinada diretamente através da inclinação heterônoma da vontade para objetos sensíveis, tal fato não fundamenta a lei prática.

Em suma, a questão da universalidade ou do apriorismo dos princípios da razão prática (tanto na ética quanto no direito) somente foi possível após o problema teórico kantiano ter sido solucionado. Precisou Kant fornecer limites à razão no conhecimento teórico para constatar que a liberdade fenomênica não era o único tipo de liberdade possível e que existia um tipo de causalidade que se poderia admitir como livre. Tal causalidade é que pautava a razão prática tanto na ética quanto no direito. Portanto, nesse sentido é que se pode afirmar um caráter sistêmico na teoria kantiana visto que ao Kant enfatizar, o problema teórico, por exemplo, tal fato tinha uma ligação intrínseca com os problemas pertinentes à razão teórica e vice-versa, sendo assim o suporte entre os vários aspectos de sua teoria é mútuo configurando-se como uma cadeia interdependente de pensamentos.

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(1) Bacharel em Direito pela UESPI – Universidade Estadual do Piauí.
Fonte: REVISTA INTERNACIONAL DIREITO E CIDADANIA

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